terça-feira, 14 de junho de 2011

DOMINGO EM MADUREIRA-CHICO ANISIO-EXTRAÍDO DO LIVRO O ENTERRO DO ANÃO

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Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo,
no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar
tão cedo assim.
— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a
cantar.
Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era do-
mingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha
tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser do-
mingo.
Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som
grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chiado, botando
fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabe-
los. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina
— falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era
domingo.
— Dorme, Climério, ainda é cedo.
— Cinco horas.
— É domingo.
Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua
cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em pre-
servar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.
A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.
A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um do-
mingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou
o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra
cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.
Esqueceu de dar descarga.
Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na
cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.
O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se
acordar, iria à missa das seis.
Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no
quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.
Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças
caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma
roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater
ponto na repartição.
Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e
Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável pa-
ra o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.
De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos.
Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga
enorme.
— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e
um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.
Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combinação
pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça
nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra
c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.
Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os
pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava
resto de sono dos olhos.
De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e
Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.
— Que horas são?
— São cinco e meia.
As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis.
Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à
praia. A de Ramos, como sempre.
Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser
jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto
do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre
fosse tão curto e um só por semana.
Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de on-
tem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou depois, ten-
tando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia co-
çar. Acompanhava a coceira com um bocejo prolongado. Pediu socorro
ao marido.
— Coça aqui.
Ele coçou. Custou a achar o lugar.
— Todo mundo já acordou?
— As meninas. Júlio, não.
— Você já viu o leitão?
— perguntou, sem interesse, enquanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota.
— O leitão cabe no forno?
— Hum, hum — ela fez que sim.
Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às
seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. Entraram as
três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia
fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha
acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam
somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje antecipara uma hora esse costume, por ter
levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos do-
mingos.
Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois,
apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.
Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A
tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho...
a velha calha do alpendre... uma torneira enjambrada ... Havia
sempre umas coisas a arrumar no domingo.
O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adi-
das".
— Vai jogar?
— Bater uma bola.
Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.
Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pe-
gou o ônibus, Climério entrou no bar.
— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém-acordado, olho inchado, cara marcada de travesseiro.
— Duas?
— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu
Severo?
Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.
Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na
hipótese mais mansa.
Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O relógio
consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.
Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es-
peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.
Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jor-
nal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.
— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa
lembrando o que ele já sabia.
O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café
com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.
— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo
no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concor-
dasse ou desse contra.
Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os
dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra
logo mais.
O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a
cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — coma-
dre Emerenciana
— muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.
— Quem é vivo sempre chega!
— Climério estreitou o compadre num abraço comovido.
— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou
risada.
Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.
— E o reumatismo, comadre?
— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem
sei o que faça.
— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.
A chegada dos compadres endomingou mais a casa.
— Como é? Tem um leitão?
— era Juca quem falava.
— É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.
— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com aflição, enquan-
to Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.
— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, enquanto se
dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.
— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.
Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Emerenciana
usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.
Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetrechos de conserto. Juca ia dar uma mão nos consertos a fazer.
— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.
— Manda brasa!
A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe es-
tendeu. Comentou:
— Tá de lascar! Vira aqui.
E ele bebeu a oitava de um só gole.
O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com baca-
lhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.
Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama
no corpo.
— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.
Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que traba-
lhavam o possível na cerca e na batidinha.
— Tá demais, essa batida.
As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e
voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compa-
dres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.
As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de
uma das três, chegaram quinze pras duas.
— Boa tarde, Seu Climério
— Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.
Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo
preciso.
— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.
Climério providenciou, cortando um velho sapato.
— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já sa-
indo difícil, pastosa, meio embrulhada.
— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo
desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.
Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida,
cortavam as frutas a usar na salada costumeira.
A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava
Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro,
fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova,
Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.
Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso
trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.
Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.
A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca
deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que
Climério lhe estendia.
— Nessa aqui eu caprichei.
Provou.
— Está uma brasa!
Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais do-
brada, dando jeito no topete — cabeleira demodée que insistia em
usar. Mostrou que ia sair.
— Não vai almoçar, Julinho?
— Não dá, mãe, tou com pressa. Como um troço por aí.
Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria
enfrentar o Madureira.
Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!
O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil
devorados em goles longos e frios.
Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era domingo,
dia bom pra sorrir.
Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.
— Vira, vira, vira.. .
— Vira, vira, vira. . .
Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.
Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demarcado por
tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.
Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava
atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta
que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.
Saíram Rui e as moças para um cinema provável.
O arroto de Climério avisou que ele acabara.
— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.
As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Conversavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pontos de tricô.
— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso
maroto.
Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não
prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...
— Dormindo!
— Deixa.
Afinal, era domingo.

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