segunda-feira, 23 de agosto de 2010

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-TERCEIRA PARTE


MILHARES DE BARBEIROS:
É A PRAGA

Aquela madrugada ficou conhecida no Beco do Deus–me–livre como a Noite dos chupanças. Enquanto eu estava preso, sofrendo torturas e todos dormiam, como por encanto, de cada vão de porta, de cada fenda, de cada greta, foram surgindo, primeiro uma, depois outra, depois mais outra pata peluda – o primeiro barbeiro sedento de sangue. Segundo eu soube depois, o primeiro a dar o alarme foi o Finão. Ele estava dormindo, quando sentiu alguma coisa insignificante, vinda do teto, cair sobre ele. Passou a mão no rosto e, de repente, deu um pulo da cama, pois morria de medo de barata. Acendeu a luz, já pronto para pregar o chinelo na danada. Aí viu que não era barata coisíssima nenhuma, mas sim um bitelo de um chupança. Meteu–lhe uma chinelada, no meio das antenas, enquanto chamava pela mulher. Olhando para cima, notou mais dois ou três, cai–não–cai da viga do teto. – Martinha, acorda, diabo! – ele começou a gritar, chacoalhando a companheira. Ao mesmo tempo, os outros moradores também foram dando pela presença dos intrusos, Deca – frentista em um posto de gasolina, vizinho parede e meia de Finão – acordou com o barulho que havia na casa ao lado. – Que barulheira é essa aí, xará? – Chupança, Deca. Um monte deles aqui em casa... Deca também acendeu a luz e ficou horrorizado. – Aqui também, xará! Minha nossa! Na casa de seu Genoca – candidato do Beco a vereador nas últimas eleições que carinhosamente promovemos a senador – a mesma cena. – Jesus amado! Genoca, acorda, homem de Deus! – sua mulher acordou aos gritos. Em minutos, dezenas, centenas de barbeiros começaram a invadir cada fresta, cada fenda, cada vão dos casebres, casas e barracos do Beco, causando pânico e desespero. Na casa de Zê Tem, na de seu Mané e na Travessa Tupi, onde eu moro, a mesma coisa. Na viela Reverendo Laureano, o mesmo drama, No barraco de seu Marquito e no de seu Itamar; enfim o Beco todo se alarmava na madrugada. No corre–corre, no sai–que–eu–prendo–e–arrebento gerado, era um tal de chinelo pra cá, tamanco pra lá e – vapt! – tome seu desgraçado e – vupt! – olha aquele ali, xará, arrebenta com esse fincão aí, senador, olha um chupança se escafedendo por ali, seu Mané, e dá–lhe seu Itamar, isso seu Licurguinho, capricha nessa sanguessuga aí, gente boa, acerta o passo desse bicho–de–parede, Marquito, vamos liquidar com essa bicharada... Zê Tem e o senador se armaram com umas latas de inseticida da vendinha de seu Licurguinho e saíram esborrifando venêno, que nem água benta, pelos barracos. Adiantou pouca coisa. Isso só serviu para deixar os barbeiros mais ouriçados, revoando em cima do povão. – Salvem as crianças! Salvem as crianças! – padre Bernardo ordenava, tentando colocar ordem no desespero. – Desocupem as casas! Saiam dos barracos! Levem as crianças para a frente da igreja! – exclamava senador Genoca, ajudando a coordenar a retirada, juntamente com seu Licurguinho, seu Itamar e Marquito. – Beca, seu Mané, me ajudem aqui... – O que foi, Finão? – Vamos fazer tochas para enfrentar esses chupanças,. Rapidamente, todas as casas, casebres e barracos foram esvaziados. Na frente da igrejinha de padre Bernardo, fizeram um círculo bem largo de fogo, colocando as crianças dentro. Era uma maneira de isolá–las do ataque dos barbeiros. Finão, seu Mané e Beca, munidos de tochas, avançaram casas e barracos adentro, chamuscando portas, janelas, paredes, desalojando centenas de barbeiros escondidos nos vãos e buracos das madeiras. O inevitável, porém, aconteceu: na confusão gerada, na ânsia de acabar com os barbeiros, as tochas, lambendo portas, janelas e paredes, acabaram por dar início a um incêndio incontrolável. As labaredas, em questão de minutos, começaram a lamber os barracos, espalhando o terror e o desespero pelo Beco todo. A desgraça só não foi maior porque os barracos e casas já estavam praticamente vazios. Se os moradores do Beco estivessem dormindo, haveria muitas mortes, porque o fogo se alastrou com muita rapidez, encontrando em sua destruição um material muito propício: a madeira seca dos barracos, Eu – preso no porão de um lugar desconhecido – não podia nem imaginar o que estava acontecendo com minha família, meus manos, com o povo sofrido do Beco.

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-SEGUNDA PARTE


MALDITA MANIA DE LER
GIBI AMERICANO!

Deixando os colegas, tomei o caminho de casa. Moro no Beco do Deus–me–livre, um terreno muito grande que, por ironia do destino, acabou ficando encravado entre a Vila Carvalho e o Tanquinho – os dois bairros mais chiques de Ribeirânia. Dizem os mais antigos que aquele pedaço de mundo pertenceu a uma fazenda de um homem chamado Artésio, que morreu e não deixou herdeiros, uma história mais ou menos assim. Dizem também que, antigamente, era comum os moradores da cidade exclamarem: – Mas você mora lá nas terras do Artésio? Deus–me–livre! E a expressão pegou pra valer. Com o tempo, a cidade veio montada a galope no progresso e o que era longe ficou perto, o que era distante ficou ali mesmo, encravado no umbigo da cidade grande, atrapalhando. E Deus–me– livre deixou de significar lonjura para se transformar em desprezo, incômodo, em sinônimo de estorvo, aborrecimento. A gente se acostumou a chamá–lo de Beco por falta de outro nome, mas é quase uma favela: velhas casas, humildes, mais para casebres do que residências e muitos barracos amontoados entre vielas, travessas, ruas irregulares e estreitas. Para ali eu me dirigia, quando tudo aconteceu. 12 Devia estar beirando a meia–noite. Eu vinha pensando na morte de meu pai, o velho Afonso, na minha mãe, que não derramou uma lágrima, tal a sua fibra, em tudo o que de ruim havia acontecido. Eu já havia passado pela praça Sete de Setembro, pelo correio, pelo cemitério, subido a Ludovico da Cunha e estava entrando na Monte Alegre. Se eu soubesse o que estava para me acontecer, teria preferido andar vinte quilômetros a entrar naquele quarteirão. Pois foi só dobrar a esquina e deparei com uma coisa estranha: em frente à Faculdade de Medicina, no meio do quarteirão, havia uma Kombi parada no meio–fio, um pouco para a frente, debaixo de uma árvore, onde a luz não iluminava direito. Tudo normal, até aí. Afinal uma perua Kombi parada no meio–fio, mesmo em lugar mais escuro, não tem nada demais, ou tem? O que me chamou a atenção foi que, ao chegar perto do prédio da Faculdade, eu vi um homem em atitude suspeita, andando pelo corredor lateral. Rapidamente, com um pé–de––cabra, ele começou a forçar a janela. Parei atrás de uma árvore, olhando o que ele ia fazer. Assim que conseguiu abrir uma das folhas da janela, tomou impulso e pulou o parapeito. Não havia mais dúvidas: era um ladrão, E ladrão – era dito de boca em boca no Beco – trata–se a pescoção. Não hesitei. Corri, atravessando a rua. Largando os livros da escola no jardim enquanto corria, eu me senti o Super–homem lutando contra os inimigos de Metrópolis. No mesmo pique que eu vinha, tomei impulso e – vumpt! – bati os pés no chão, saltando que nem o meu herói preferido. De um pulo, eu estava no parapeito da janela. Como um gato – vapt! – pulei para dentro do prédio. Só aí é que entendi que de Super–homem eu só tinha dois ou três gibis, todos eles faltando algumas páginas, guardados na gaveta da cômoda lá de casa. Ali estava eu, o Tinho do Beco, subnutrido e raquítico anti–herói, ser nada super–humano, brasileiro sim senhor. Foi só eu botar os pés no chão – plaft! – e levei logo as mãos à cabeça, vendo a burrada que fizera. – Quietinho aí, garotão! Pare onde você está. Não se mexa e nem pense em bancar o engraçadinho... – Pô, meu! Desculpa, tá? Devo ter entrado em janela errada. Eu tava pensando que.,. Não adiantou querer me desculpar. A voz foi autoritária: – Sem pensar, garotão... Já que entrou, agora fica. Sem pensar e sem falar, tá legal? Tava, o que eu podia responder? Minha vontade era fazer tudo ao contrário, como nos filmes do cinema mudo: despular a janela, voltar para trás da árvore, para a rua Ludovico da Cunha, mudar de caminho e tomar rumo ignorado. "Maldita mania de ler gibi americano!" – pensei. – Enquanto eu acendo a lanterna, feche a janela. Mas devagarinho... Quando fechei a janela, ficou tudo escuro. Só conseguia ver o facho da lanterna que o homem portava, à minha direita. – Não se mexa, garotão – disse ele, quando eu tentei me mexer. – Só faça o que eu mandar. Se você já brincou de mocinho, sabe o que é um "berro", não? Eu sabia. Só que o dele não deveria ser de brinquedo, como os do meu tempo de moleque. Agora sim, vá se virando devagar. Assim, como um bom menino... De leve, amizade! Na maciota. Muito de leve, falô?... Tá vendo esse saco aí no chão? – E o facho de luz iluminou perto dos meus pés. Eu estava. – Pega ele... Não, assim não. Eu disse na maciota. Como um bom menino... A gente não tem pressa, certo? Amizade, está vendo esses vidros aí na sua frente, em cima do balcão? Eu não estava. Depois, com o facho da lanterna, eu vi os vidros sobre o balcão, uma infinidade deles. – Com calminha, falô? Com calminha, amizade. Isso, você vai colocando um por um dentro do saco. Ao ver que os vidros estavam cheios, eu não quis obedecer. Parei, horrorizado. Num dique, compreendi onde estava: era a sala da doutora Rosângela Conceição. Ainda na semana passada, eu estivera naquele prédio, naquela mesma sala, entrevistando a doutora para um trabalho de escola. Viemos eu, o Véio, o Roberto, a Cris Biasoli e a Cláudia Leonel – a nossa equipe toda. – Por favor, cuidado com esse balcão – disse–nos a doutora, logo que entramos na sala. – Estes vidros estão cheios de barbeiros infestados. Estes bichinhos – e a doutora pegou um vidro com indiferença, demonstrando intimidades – transmitem uma doença terrível: a doença de Chagas. São meus companheiros de pesquisa. Eu os venho pesquisando há muito tempo... Dentro dos vidros, gordos insetos – centenas deles – projetavam suas patas imundas contra o vidro, querendo subir até a tampa, mas escorregando em cada tentativa. Naquele momento, eu não tinha escolha; sabendo que eu tinha um revólver às minhas costas, o jeito era obedecer. Eram os barbeiros pela frente e o revólver às costas. Hesitei, mas sabia que acabaria obedecendo. – É isso aí, garotão! Vai pegando ou eu meto uma azeitona na sua cabeça. Pra mim tanto faz, amizade! Tive medo, mas não havia escolha: era preciso obedecer mesmo. Com nojo, comecei a pegar os vidros, colocando–os dentro do saco. Com a operação, os insetos ficaram excitados, tentando sair dos vidros, o que aumentou o meu medo e o meu nojo. Quando terminei, o homem ordenou: – Agora nós vamos sair daqui pela porta da frente, numa boa, tá legal? Você vai na frente, carregando o saco nas costas. Eu vou atrás – disse ele, calmamente. – Se cruzarmos com alguém, você não sabe, não viu, não conhece... Deixa que eu dou as explicações. Na rua, não banque o engraçadinho. Tó de olho no saco e em você. Descuidou, dança! Àquela hora, o prédio estava vazio. A rua também estava deserta. Atravessamos o jardim rapidamente. Para minha sorte, já na rua, não longe dali, vinham dois moradores do Beco: o Pedrão, um sujeito patoludo e mal– encarado, um tipo estranho, e seu Odair. Pedrão já ia para o seu ofício de guardador de lugar na fila do INPS. Já seu Odair era guarda–noturno nas vizinhanças. Tentei retardar o passo, fazendo cera, mas o homem me ameaçou, cochichando pressa. Pedrão e seu Odair me reconheceram. Antes de entrar na parte traseira da Kombi, tive a certeza de que eles me reconheceram. O homem trancou–me lá dentro, fechou bem os vidros e, logo depois, o furgão saía cantando os pneus. "Ainda bem que eles me viram", pensei. No dia seguinte, poderiam testemunhar a meu favor, contando que eu não tinha nada com o roubo dos barbeiros, provando que eu estava sendo forçado. Logo que a Kombi começou a andar tentei me safar, mas vi que era besteira: a porta só abria por fora. Acostumando–me com o escuro, percebi que havia um respiradouro que dava para a cabina e, encostando o ouvido no buraquinho, dava para escutar mais ou menos o que os dois homens falavam. – O que saiu errado? – perguntou o motorista, em tom de censura. – Você não viu um garotão pular a janela, logo depois que eu entrei no prédio, amizade? O jeito foi trazer ele junto... – Você está maluco, cara? – Você acha que eu podia deixar o garotão soltinho da silva para fazer o meu retrato falado pros tiras? – Eu não queria entrar nessa, cara! Eu avisei pra você que o nosso negócio é arrombar túmulos, não é mudar de ramo... – Qualé, amizade! O tempo das bocas–ricas já passou. É bom ir pensando em deixar essa vida de tatu. Daqui pra frente, é preciso mudar sim. Então era isso. Bem que eu estava desconfiado que aquelas vozes eram familiares. Os dois eram os mesmos que andavam arrombando os túmulos. – E o que a gente vai fazer com ele, cara? – Isso é o chefão quem vai resolver. Mas eu não podia deixar ele ficar lá, né, amizade? O motorista parecia ter entendido, porque não insistiu mais. Houve, então, um longo silêncio entre os dois. Depois de um bom tempo, eles retomaram a conversa, o amizade tentando convencer o motorista. – Era a melhor hora pra se entrar no prédio. A gente não contava era com o aparecimento desse palhaço... – Sei não, cara. O chefão não vai gostar nada disso. Não estava nos planos, entende? O negócio era pegar os barbeiros, sem deixar pistas. Aí a gente começava a praga e tudo bem. Agora, temos que voltar à garagem, falar com o chefão, levar bronca. – Nisso eu fui esperto, amizade! – e ele deu uma risada irônica. – Se alguém vai se ferrar, vai ser o garotão aí atrás. Quando ele apareceu, eu mandei ele encher o saco de barbeiros. Tem impressão dele por todos os lados. Se alguém vai se ferrar, esse alguém vai ser ele. "Droga de vida! Mais essa, então?" – pensei, fulo da vida, sem nada poder fazer. A Kombi, para me confundir, começou a andar em círculos. Na certa, os homens não sabiam o que fazer comigo, apesar de terem dito que iriam voltar à garagem. O fato de ficarem andando me deu uma relativa calma. Não iam me matar imediatamente. Pretendiam mesmo me levar até o tal chefão. Caso contrário, não se preocupariam em dar voltas e voltas. Bastaria ir direto para o mato, abrir a porta traseira do furgão, mandar que eu descesse, para me fuzilar com um balaço na testa, como fazia o Esquadrão da Morte. Uma coisa que me intrigava era o destino dos barbeiros. O que fariam com eles? Que praga seria essa? Por que estavam roubando mais de mil barbeiros? O que fariam com eles, meu Deus? – O que a gente vai falar pro chefão, cara? – o motorista retomou a conversa. – Sei não, amizade! Mas, de qualquer jeito, os barbeiros estão aí. Vamos direto pra garagem agora. O chefão deve estar lá. Depois de rodarmos um tempo que não sei se foi de quinze minutos ou meia hora, mas que tinha a sensação da eternidade, a Kombi foi diminuindo a velocidade, até parar. Pelo sacolejar, devia ter deixado o asfalto e entrado em uma estrada ou rua de terra. Logo depois, notei que alguém desceu da Kombi para abrir algo como um portão. O furgão rodou por um terreno cheio de pedregulhos e tive a certeza de que chegávamos a um pátio de manobras, – Lá está o chefão, cara! – escutei o motorista afirmar. – Vai dar o maior bode quando ele souber do seu garotão aí atrás. – Fica frio, amizade! Você está parecendo maria–mijona... Desceram. Os passos sobre os pedregulhos se distanciaram. Não demorou muito, retornaram apressados, com mais alguém. – Mas como imprevisto, seus palermas?! Vocês já deviam estar executando o Projeto Pirâmides... – uma voz rouca e nervosa ordenava, impaciente. – É isso aí, chefão... – Isso aí, o quê? – Imprevisto, né! O que se pode fazer... – Mas que imprevisto, seu lesma?! – Tá aí dentro do furgão... – Então abre isso logo, seu palerma! O amizade tremia todo. Pela sua voz, dava para perceber que ele esperava o pior. A porta do furgão foi aberta, e a luz da lanterna feriu meus olhos. – Mas o que é isso, seus palermas! Por acaso vocês são da Assistência Social, para ficar recolhendo os menores carentes, hein? – e o chefão de voz rouca e nervosa dava cascudos no amizade e no motorista. – É isso aí, chefão! A gente pensou em dar um fim nele, mas não quisemos tomar nenhuma decisão sem consultar o senhor – o amizade se desculpava. – Ele se meteu a abelhudo, pegando a gente com a colher no mel... – Fizeram bem, seus palermas – adquirindo o sangue–frio, a calma, o chefão sorriu, irônico –, fizeram muito bem. Nem eu e nem o doutor gostamos de tirar uma gota de sangue de ninguém. Que os barbeiros façam isso, tudo bem, mas eu não tenho coragem disso... Pra fora, seu fedelho! – ele me ordenou. Virando–se para os dois homens, ele decidiu: – Levem–no para baixo. Que curta umas férias prolongadas até o doutor decidir o que fazer com ele. Quando desci da Kombi, o amizade ordenou que eu abaixasse a cabeça, não olhando para ninguém. Estava escuro, mas eles não queriam se arriscar. – Não é preciso – sentenciou o chefão, – Escute aqui, seu fedelho, se abrir o bico, morre antes que os outros. Você já vai levar o seu por se meter onde não é chamado – e dirigindo–se aos dois, ele falou: – Não batam muito, só o suficiente para mostrar do que vocês são capazes se ele destramelar a língua. E quando terminarem, podem começar a praga, dando continuidade ao Projeto Pirâmides... Ao se afastar, enquanto eu era levado para dentro da garagem, ele dizia mais para si: – Finalmente chegou a vez daqueles palermas do Favelão. Eles vão ver com quem estão lidando... Enquanto uma porta era aberta à minha frente, fiquei tentando ligar o roubo dos barbeiros à frase proferida no escuro da noite. Favelão era como o povo de Ribeirânia se referia ao Beco do Deus–me–livre. De repente, tudo ficou muito claro para mim. Mas eu não queria acreditar que seriam capazes de uma maldade daquelas. Por quê, meu Deus? Era certo que o Beco era odiado pela sua intromissão geográfica. Pobres, favelas, becos, corti19 ços, cohabs sempre foram relegados aos arredores das cidades, à periferia. Mas daí a... Não. Eu não queria acreditar Eu devia estar sonhando. Um empurrão, porém, veio me trazer à realidade. O chão, então, desapareceu a meus pés. Projetado no vazio, desci uma escada da pior forma, aos trancos e pescoções. Estavam me jogando dentro de um porão horrível, sem luz, sem ventilação e cheio de baratas.

domingo, 22 de agosto de 2010

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-PRIMEIRA PARTE




ALGUÉM TEM UM

APAGADOR DE MEMÓRIAS?


Ser acusado de um crime que não se cometeu é a pior coisa do mundo.
Só quem já passou por esse drama pode compreender o sufoco que é ter de pagar por uma falta não cometida, por um crime não praticado.
Eu digo isso porque já estive nessa situação. Sem querer, entrei na
maior fria da minha vida. E tudo aconteceu quando eu vinha voltando da
escola, tarde da noite, em um dia que eu gostaria de esquecer, de apagar da minha memória, como se apaga um quadro–negro.
Eu curso o primeiro colegial, período noturno, na EEPSG Cônego
Musa Julião Motta de Barros, na cidade de Ribeirânia.
Na noite em que tudo começou, nós tivemos só três aulas: uma de
Português e aula dupla de Matemática, uma prova muito difícil. Na hora do intervalo, fomos dispensados. Em vez de ir direto para casa, ficamos
conversando eu, o Carolli e o Roberto Ruocco, um colega que veio de
Pinhal.
O Carolli, repetente do primeiro colegial e mais velho da turma, tem o
apelido de Véio. Ele não se importa. Creio mesmo que ele gosta de ser
chamado assim. Dá mais moral para ele.
Até aquele dia, eu, o Véio e o Roberto éramos amigos inseparáveis.
Mas a partir daquela noite, com tudo o que aconteceu, nossa amizade ficou muito abalada. Hoje já voltamos às boas, mas foi difícil superar a
desconfiança deles.
Na saída da escola, uma vez que tínhamos bastante tempo, ficamos
conversando na esquina. O Carolli, como era bom de Matemática, ficou
resolvendo os exercícios da prova.
– Pó, Tinho! Mas era uma barbada, mermão! – ele me explicava,
quando eu disse que não conseguira resolver a segunda questão, um
problema envolvendo equação do segundo grau. – Quando você obteve o
número vinte e dois, era só passar o xis para cá e...
Tinho, esse é o meu apelido. Meu nome é Walter. Walter da Silva, mas
todo mundo me conhece mesmo é por Tinho; tanto lá no Musa Motta, como no Beco, onde moro.
– Barbada pra você, que é chegadão nos números – respondi,
justificando–me.
– Pra mim também é fogo. Matemática é muito complicado. Véio, você
bem que podia dar umas aulas particulares pra gente, né? – disse Roberto, o olhar na direção de Carolli.

Nesse momento, o Valdir Domeneghetti vinha se aproximando da
rodinha.
– E aí, pessoal? Vocês também foram dispensados?
Ao me ver, ele perguntou:
– Tinho, você falou com o gerente do seu banco?
Antes que eu respondesse, ele continuou:
– Se eu conseguir ser guardinha lá no Banco do Brasil, eu tô feito..
– Que guardinha, meu! Mais respeito. Eu sou menor estagiário –
respondi, em tom de gozação. Depois, sério: – Deixe comigo, Valdir. Eu tô
batalhando. Falei com o seu Baraldi, o gerente, e ele disse que a escola tem que indicar o seu nome. Aí você faz um teste lá e, se der legal, você vai mesmo ser guardinha do Banco do Brasil – voltei a chateá–lo, reforçando a palavra guardinha.
Na verdade, não era tão fácil assim. A seleção era fogo. Tive muita
sorte conseguindo entrar lá. Portanto, minha vida é assim: estudo à noite e, de dia, sou o lépido, rápido e rasteiro menor estagiário do Banco do Brasil, com as funções de ir e vir do térreo ao décimo andar, levando e trazendo documentos, tirando fotocópias, sempre rapidinho, que eu não dou moleza mesmo. No dia do meu aniversário, até ganhei um troféu, em
reconhecimento à minha esperteza.
Naquela noite ainda falamos de futebol, comentando a fase ruim do
Coríntians, mas elogiando a personalidade amadurecida e o espírito de
equipe do Sócrates. Quando eu falei que o Palmeiras também não andava bom das pernas, o Valdir – que é palmeirense verde – se queimou. Aí o Roberto interferiu:
– Vamos mudar de assunto, senão vocês vão acabar brigando. Vamos
falar de meninas. Vocês viram como a Biasoli está bonitinha?
Pronto. O assunto agora era mulher, e de mulher todo brasileiro
também entende e dá palpite.
– Sou mais a Eloísa Gazini – o Carolli votou.
– Aquela morena, colega da Roberta? – perguntou Valdir.
– Essa mesmo. Ela é um chuchuzinho...
– Eu prefiro a Leonel, Véio – o Valdir escolheu.
– Eu fico com todas – respondi, colocando um ponto final na votação.
Aí o Carolli se lembrou de comentar o caso dos túmulos arrombados.

– É mesmo, vocês ouviram falar? – o Roberto fez cara de quem viu
assombração.
– O Tinho viu os caras, não viu, Tinho? – Valdir apontou em minha
direção.
Eu não queria comentar, mas não tive como sair dessa. Conta pra nós,
Tinho...
– Bom, vocês sabem que o cemitério fica no caminho do colégio pra
casa. Toda noite eu passo por lá. Ontem, eu ia passando rente ao muro e ouvi
vozes...
– Era alma do outro mundo ou assombração, mermão? – o Carolli quis
tirar um sarro.
– Aí, ó! Eu já não estava a fim de contar, que eu sabia que ia ter
gozação...
– Véio, sem essa né, meu! – Valdir bronqueou.
– Eu já estava cabrero – continuei, sob protesto – porque, não faz muito
tempo, eu fui visitar o túmulo do meu pai e lá no cemitério os coveiros
estavam comentando que, naquela madrugada, alguém havia violado dois ou três túmulos. Quando eu ouvi as vozes, lembrei–me da conversa com os coveiros.
– Você não ficou com medo, Tinho? – perguntou Roberto, interessado
na história.
– Medo de quê?
– Sei lá, de alma penada, assombração, mula–sem–cabeça, esses troços,
– Eu tenho medo é dos vivos; dos mortos não... Eu escutei as vozes e
resolvi observar por cima do muro... – continuei a contar. – Não deu outra.
Dois sujeitos estavam escavando um túmulo, não muito longe dali. Como
eles estavam ocupados, nem perceberam que eu os observava. Um deles
falou assim: "Enterraram fundo demais esse defunto, hein, cara!" O outro respondeu: "Isso é nem enterrar, amizade, isso já é plantar o coitado aí dentro". Eu queria dar um susto nos dois, mas fiquei com medo. Pensei em dar um gemido forte, sei lá. Mas e se eles me encarassem, eu estava frito. De repente, lá no fim da rua, apareceu uma rádio–patrulha...
– Aí você avisou os guardas? – Carolli perdera o ar de gozação e
acompanhava a narrativa com interesse,
– Eu pensei em avisar, Véio, mas preferi descer do muro, antes que me
vissem, e seguir o meu caminho. Fiquei com medo que eles me
confundissem com os arrombadores...
De repente, o Carolli me fez uma pergunta que me deixou muito
chateado:

– Tinho, você falou que foi visitar o túmulo do seu pai. E o assassino
dele, a polícia ainda não descobriu quem foi?
Eu não queria comentar nada sobre a morte do meu velho, mas ele
insistiu e o jeito foi encarar,
Não fazia muito tempo, meu pai fora estupidamente assassinado,
Chegaram ao requinte de esquartejar barbaramente o seu corpo.
Foi uma cena horrível, que abalou a todos os moradores do Beco. Eu
não gosto nem de lembrar muito isso. Ver o pai da gente naquele estado é
uma cena que nunca mais sai da cabeça de ninguém.
Não fosse a fibra de dona Jacinta – minha mãe –, eu e os manos até
hoje não saberíamos o que fazer.
Meu pai não teve muita instrução, mas tinha cursado a escola da vida,
essa sim a responsável pela sua formação. E foi nessa escola que ele se
diplomou, ensinando pra gente que o mais fraco precisa falar, botar a boca no mundo, gritando, se for preciso.
Foi essa fibra que fez dele um homem respeitado lá no Beco,
Quando eu ainda era de colo, só pra recordar, os trens da Mogiana
passavam por dentro de Ribeirânia. E passavam pertinho do Beco. Padre
Bernardo, vigário lá do Beco, cansado de pedir ao prefeito para colocarem uma cancela a fim de evitar mais acidentes e mortes, sentou–se na linha do trem, impedindo que as locomotivas continuassem atropelando os moradores.
Meu pai foi o primeiro a seguir o seu gesto, incentivando o resto.
Isso lhe valeu a liderança no Beco. Depois disso, era comum ouvirem
meu pai pra tudo. Qualquer desavença, qualquer bate–boca, lá estava meu velho dando sua opinião, fazendo valer o seu diploma da escola da vida.
Foi ele quem enfrentou o "xerife" Boca Torta, um bandidão que
apavorava a todos lá no Beco. Depois que ele desarmou o bandidão a unha, na base do olhar duro e firme, nunca mais nenhum xerife se atreveu a fincar base no Beco, sem que levasse o troco. Assim foi também com Malufim,Ademarzão e Taturana.
Meu pai sabia, no entanto, que o que vale mesmo é um diploma, um
cartucho como ele dizia.
– Filho, sabedoria ninguém te róba – ele falava quando me via
farreando com a molecada do Beco. – Toma tento que

sem cartucho ocês vão ter que dá murro em ponta de faca, que nem eu,
Realmente, ele não merecia morrer daquele jeito. Ninguém merece.
Além de esquartejá–lo, a malvadeza foi tanta que estancaram o corguinho da Onça, que passa pelo Beco, e o seu corpo ficou boiando sem destino, as águas sangrentas inundando o terreno dos barracos, querendo invadir as casas.
– Não encontraram não, Tinho? – Carolli insistiu.
– Não, Véio... ainda não... – respondi, vagamente.
Vendo que eu me entristecera com a lembrança da morte de meu pai,
cada um resolveu tomar o seu caminho, a conversa morrendo ali.
Despedi–me com um tchau sumido, tomando meu rumo, sem saber que
o pior ainda estava por acontecer.


sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ISSO É SÓ O FIM-


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VICÍO DE MATAR-CONTO POLICIAL DE RICHARD KADROV


http://4.bp.blogspot.com/_WvowifvT5gg/Ssh7PZ0g4JI/AAAAAAAAABs/dnGo56tDLHc/s320/PISTOLA.jpg

Aproximo-me da mulher, mas o acompanhante me vê e faz menção de pegar alguma coisa sob o casaco. Reflexos não humanos; mas costumo devorar não humanos no almoço. As batidas
do coração da mulher sussurram, me fazem confidências. A boca do homem se movimenta, expressando dor em alguma linguagem animal. O estalar dos ossos lembra uma placa de gelo que se quebra, um som distante e solitário. Deixo-o contorcendo-se, com a Magnum ainda na mão. Então, eu e a mulher somos um, dançando num tapete de cacos de vidro no beco atrás do clube, enlaçados em uma valsa em câmera lenta, meus dentes em sua garganta, seu sangue em meu estômago. Jóias, penso. Mel. Suor. Amor. Meu coração bate mais devagar quando a coisa na minha cabeça percebe que a vida dela está se extinguindo. No momento em que isso ocorre, emite um som baixo e resignado, como se há muito tempo esperasse por mim ou por alguém como eu. Encara a morte como uma libertação e está certa. Sua morte trouxe alívio para minha sede e a coisa dentro de minha cabeça ronrona como um gato gordo e satisfeito. Abandono o corpo em um depósito já atulhado de lixo. Depois, ardendo com a vida dela, pulo um muro e começo a escalada; deslizo e rodopio pelos telhados, saltitando e batendo os calcanhares. Talvez você já me tenha visto entre as antenas de televisão, o Baryshnikov do matadouro.
Tenho visto você freqüentemente no ônibus, no bonde, ou andando de jinriquixá às quatro da manhã. Geralmente, você não me vê. Sou igual a qualquer um. Suo sangue e mercúrio e me disfarço com roupas extravagantes, típicas desses esquizofrênicos que vivem pichando as paredes do metrô. Cada mensagem rabiscada é uma súplica e uma advertência. Está escutando? Eu estou. Às vezes, percebe minha presença, trocamos olhares de reconhecimento; comunicamo-nos naquela estranha linguagem muda das primeiras horas da manhã, no pesado silêncio de um cenário de tampas de bueiro fumarentas e portarias desertas de gigantescos edifícios de escritórios. Ambos detestamos as palavras, é óbvio. Ainda assim, não posso deixar de me perguntar quem você teria traído ou o que teria feito para me mandarem no seu encalço.

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À noite, sinto seu calor. Conheço sua pulsação, porque 81 é a minha também. Deram-me uma pulsação igual á sua e me disseram para encontrá-la, caçá-la pelo ritmo e essência de sua vida. Se não lograr matá-la, parar seu coração, morrerei em seu lugar. Meu corpo não resistirá. Não posso viver muito tempo com a pulsação alheia.
Nem ao menos me disseram seu nome.
Há uma coisa na minha cabeça. Brilhante como um cromado, lisa como o jade polido, no formato de uma bala. Ouço seu zumbido dentro de meu cérebro, como um casulo ansioso por libertar o conteúdo. Altera-me. Dilui meu sangue, embaralha meus pensamentos, endurece meus olhos transformando-os em negras adagas gélidas e brilhantes. Quando decidem me ligar, sou capaz de ver até a medula dos seus ossos, farejar a vida em você. Variegate Erythropoietic Porphyria. Sim, o vampiro mecânico, sou eu mesmo. Os Homens de Terno me dão o tratamento Lugosi quando bem entendem, me ordenam que mate e depois me desligam através da bala na minha cabeça.
─ Hemofluxo ─ sentenciam em sotaques de Harvard, Bangkok
e Texas.
Acredite em mim quanto a este aspecto: quando me ligam, é melhor do que qualquer droga. Melhor que bolinhas, sexo ou música. Por isso sou inteiramente dominado por eles. Os Homens de Terno se tornaram minha mãe coletiva. Sou amamentado pela coisa em minha cabeça.
Criaram treze de nós ao todo. Sete mulheres e seis homens.
Um número primo; o número de uma sociedade macabra. Grande sujeitos, aqueles rapazes do governo. Trouxeram-nos de volta para os Estados Unidos e colocaram-nos balas vampirizantes
na cabeça. Deram-nos olhos que se turvam quando apertam um botão. Suponho que é por isso que estou aqui voando nesta lata de luxo, a uma velocidade mach três, sobre o Atlântico Sul, contando esta história a vocês.
Há alguns anos atrás, eu vivia na água. Mais precisamente,
em abóbadas de gelo antártico, brancas e límpidas, quilômetro
e meio abaixo da chuva ácida, dos vazamentos de radiação
e dos peixes cancerosos. O fim do mundo, tão fundo que as paredes ainda continham H2O fresca, fossilizada em forma degelo. Éramos trabalhadores voluntários, treze presidiários entre centenas, egressos de San Quentin. Estavam pagando preços de ópio por aquela água, preservada dos resíduos industriais e da agonizante camada de ozônio por um milhão de anos. Entretanto, profissionais da hidromineração teriam abocanhado uma parcela muito grande da margem de lucro do cartel que financiava a escavação. Foi por isso que nos recrutaram. Um negócio supimpa para todos os envolvidos. Obtinham a água a preços mais baixos, e nós, uma semana deduzida de nossas penas por dia de trabalho.
Estamparam nossos números de presidiários nas costas dos uniformes termo isolantes. As fibras de micro vidro recendiam
a mofo, urina e suor velho. Selados dentro daqueles trajes volumosos, não tínhamos sexo; por trás das máscaras respiratórias,
pobres diabos sem rosto, mourejávamos escavando a alva massa glacial, buscando uma saída. Eu operava uma máquina que cortava grandes blocos de gelo das vertentes escavadas no maciço subterrâneo em que se haviam transformado antigos mares e em seguida os içava e depositava em esteiras rolantes que os conduziam às salas de processamento. Lembro-me dos perfis suspensos de flores e peixes pré-históricos, do brilho vermelho dos mostradores digitais refletido nos canos polidos dos tanques de oxigênio, dos painéis com legendas em russo que não conseguia ler. Sentia-me em casa, livre e seguro; á noite, sonhava em tons de branco silente.
Tomávamos uma chuveirada uma vez por semana. Não havia luzes no recinto. Os guardas usavam óculos de visão noturna e portavam aguilhões e cassetetes. Homens e mulheres tomavam banho juntos, amontoando-se em duas longas filas sob as bocas que despejavam água. Placas de acrílico barato apareciam no revestimento texturizado enegrecidas e abauladas, com o aspecto de pústulas numa pele inflamada. Sempre conseguia localizá-la sob a nervosa luz fluorescente das portas de saída, movendo-se na direção oposta, por trás da mulher tatuada e bem à frente do homem baixo e musculoso. À noite, dormíamos em beliches, dispostos em longas filas e separados por cortinados. Andei trocando de cama com outros presidiários tentando descobrir onde ela dormia. Peguei os beliches mais altos, os poleiros 83 mais encardidos e infectos, onde o colchão praticamente havia se desintegrado, antes de conseguir localizá-la. Quando o homem do beliche vizinho recusou-se a trocar de lugar, esmaguei-o com o guindaste no turno de trabalho seguinte. O capataz registrou o caso como acidente de trabalho e requisitou outro operário para substituí-lo.
Até me mudar para a cama próxima a dela, não tinha me ocorrido que a mulher e o homem musculoso eram amantes. Ficava deitado ali á noite, ouvindo-os, a respiração rápida e ofegante, o roçar da pele dela na dele. Apresentei-me e fiquei sabendo seus nomes: Cale e Diega. O sorriso de Diega era só caninos. Era dessas mulheres que podiam extrair seu sangue só de olhar para você. Poderia exauri-lo e sugar até a medula dos seus ossos e ainda assim você agradeceria o tempo todo. Cale estava obcecado por ela, isso era evidente. Mais tarde, quando pensava a respeito percebi que era um candidato perfeito para o Hemofluxo.
Mesmo lá no gelo, os olhos dele tinham uma aparência dura e embaçada, semelhante à de bijuterias baratas fáceis de encontrar num camelô de rua em Hong Kong. Era o animal de estimação de Diega. Sente-se e dê a patinha , querido. O que não significava que não o amasse. Diega gostava de mim também. À noite, quando Cale estava fora se entretendo com os jogos de vídeo, ia para a cama dela. Gostava que a massageasse, começando pelos músculos rijos do peito dos pés e dos tornozelos, progredindo objetivamente para cima, passando pelas pernas e coxas até os cabelos louros do baixo ventre. Ela me afagava a cabeça e dizia o quanto gostava dos meus cabelos. Beijava-lhe as palmas das mãos, lia sua sorte, inventando histórias para ela. Às vezes Cale voltava e ficava observando, enquanto eu a acariciava. Ficava lá sentado no pé da cama, como uma gárgula de olhos negros, com os joelhos dobrados e encostados no peito, enquanto deslizava meus dedos pelas pernas de Diega, ou por suas costas e nádegas. Depois eu voltava para minha cama e Cale assumia. Ao contrário dele, eu não gostava de ficar assistindo.
Uma noite, estava segurando com força um dos tirantes do meu beliche, concentrado nos sons que ela emitia ─ vogais tagálicas labiais arredondadas, estranhamente musicais ─ quando a mão de Diega atravessou a cortina que separava nossos catres e envolveu a minha. Segurou-a firmemente o tempo todo. As veias no seu pulso denunciavam o ritmo do coração animal. Sem querer, tive uma súbita visão de Diega como uma criança, agarrando a mão do papai e da mamãe no Zoológico de Manila. Envolvida pelo cheiro desagradável de chocolate rançoso e suor dos animais, com pavor de ser arrastada e se perder no meio das pernas da multidão de estranhos. Depois, senti uma pressão repentina
enquanto deixou escapar as últimas interjeições entrecortadas
do outro lado da cortina. Fiquei imaginando se estava sendo preparado para ser o novo animal de estimação.
No nosso décimo mês de cativeiro enregelado, os Homens de Terno vieram nos buscar.
Na cidade, era fácil ficar invisível. Dormia durante o dia. À noite, saía para caçar, sempre com o cuidado de voltar para casa ao amanhecer. O apartamento estava equipado com janelas especiais, dotadas de vidraças com duas lâminas de vidro polarizado.
Às vezes, observava os letreiros dos clubes pela manhã, na hora de fechar. Ficava impressionado de ver como eram vazios e inertes, como os olhos de um peixe morto. Mas quando o manto da noite descia sobre os telhados, centenas de olhos voltavam à vida, piscando para mim como as garotas de saltos altos e roupas colantes que ficavam na esquina segredando o preço do amor no ouvido dos turistas. Todas muito pálidas, como estava na moda, as orelhas cintilando com o brilho de extravagantes brincos de cristal colorido. Misturava-me ao grupo e vagava entre elas, deixando os rostos estuantes se sucederem à minha volta, quase me tocando, enquanto permanecia atento às batidas dos corações.
Não é fácil passar despercebido neste maldito jato. Os jovens
executivos de olhos vivos do outro lado do corredor insistem
em lançar olhares de esguelha para meu cantinho escuro na cabina de primeira classe, pensando que sou algum tipo de mafioso de férias. Já matei muitos como eles, esfacelando suas estúpidas caras rosadas com minhas próprias mãos. No momento que possuo suas pulsações, passo a possuí-los. Os Homens de Terno tinham rostos como esses. Rostos padronizados como cartões postais, difíceis de distinguir, impossíveis de gravar na 85memória. Compraram-nos do cartel com dinheiro vivo. Fomos, os treze, selecionados entre centenas, de acordo com um modelo
computadorizado, levando em conta os tipos de personalidade,
nossos crimes e atributos físicos e intelectuais. Fomos com eles porque determinaram que assim o fizéssemos. Não sabíamos
quem eram, e não forneceram nenhuma informação sobre si mesmos. Ainda não sei quem pagou meu aluguel. A CIA? O KGB? A companhia telefônica? Mais de uma vez, no noticiário da Rede Mundial, apareceu o rosto de alguém que eu havia eliminado
por ordem deles. Um bioquímico coreano. Um pintor neo expressionista. Uma atriz pornô de Formosa. Que teriam essas pessoas em comum? Que poderiam ter em comum com você?
Uma coisa sou obrigado a reconhecer: a primeira vez que me senti realmente vivo foi quando me ligaram pela primeira vez. Acordei na mesa de cirurgia, recondicionado, com uma voz na cabeça que falava comigo através da bala em meu cérebro. A voz me mandou caçar e me ensinou como fazê-lo.
Era um prostituto ativo na área do Times Square, com uma tatuagem espalhafatosa que, dependendo do ângulo, parecia
ora um desenho com um motivo Maori, ora uma gueixa, ora um escudo ou logotipo de uma associação qualquer. Encontrei-o em um fim de semana, no meio de uma multidão de centenas. Levei-o a um desses grandes cinemas holográficos. Fitava-me o tempo todo de um modo engraçado, com um brilho de neon no olhar. A princípio, eu estava nervoso, com medo de ter escolhido o homem errado. Entretanto, podia ouvir nitidamente as batidas do seu coração, farejar a medula dos seus ossos. Pensando que eu hesitava por timidez, colocou as mãos nas minhas pernas. Quando me inclinei na direção do seu rosto, fechou os olhos, expondo a garganta. Foi quando o peguei. Naquele momento, inebriado pela explosão de vida, pensei: O mar é salgado, e já minerei os mares. O sangue é salgado. O sangue é mar e está vivo dentro de mim. Suguei até a última gota e senti como uma martelada
bem entre os olhos, que me deixou fora de mim, engolfando-me num fervilhante turbilhão líquido. Nessa hora, a única coisa que meus olhos focalizavam era um cristal barato pendurado na orelha do garoto, que emitia imagens pornográficas, como microondas
refletindo-se em latas de conserva vazias no fundo o mar.
Os Homens de Terno não deixavam nada ao acaso. Quando
precisavam de nós, ligavam as coisas em nossas cabeças e atendíamos o chamado prontamente, ansiosos e elétricos, soltando faíscas. Subíamos até o último andar em elevadores com painéis de madeira, música funcional e corrimãos de metal dourado brilhante, com marcas foscas deixadas no polimento por nossas mãos nervosas.
Eu e Cale éramos os mais requisitados; quanto a mim, tudo bem. Tínhamos um salário, mas os assassinatos eram pagos a parte. Os Homens de Terno eram loucos por informática. Soterravam-nos com disquetes, resmas de bisonhas e intermináveis listagens e fotos digitalizadas de qualquer um cuja pulsação nos tivesse sido destinada. Havia também a ficha médica, extratos bancários, situação de crédito na praça, impressão da voz, impressão genética, registro de fundo do olho, carteira de identidade federal, estadual e de trabalho, lista de clubes freqüentados,
lista de amantes. Os Homens de Terno gostavam tanto desse tipo de informação porque assim podiam dar um cunho de respeitabilidade e cumprimento do dever ao trabalho que executávamos, fazendo de conta que éramos todos policiais perseguindo um ideal elevado e não assassinos profissionais. De volta à casa, costumava me desfazer de todo esse lixo na retalhadora,
conservando no bolso apenas as fotografias.
No retrato que me deram, você está sorridente, usando um saiote de tênis. Ao fundo, aparecem palmeiras, recortadas sobre o límpido céu azul mexicano, mas o reflexo do sol tropical na sua pele e o branco da sua roupa lhe emprestam uma aparência de suave frescor, como se estivesse protegida por um banco de neve impenetrável.
Não me interprete mal ─ o desejo sexual não é importante neste contexto. Um adulto normal tem em média quatro ou cinco litros de sangue no corpo. Você é ótima, mas meu tanque está quase vazio. Percebeu?
Cale estava no Cairo, cuidando de um empresário alemão envolvido em negócios internacionais. Diega e eu estávamos dando uma olhada nas lojas da Aldeia. Um lugar graciosamente87
antiquado, interessantíssimo. Ela comprou um canivete automático
de cabo preto fosco, e divertia-se admirando o próprio reflexo nos vidros das vitrines das lojas, mantendo a lâmina no nível dos olhos, fazendo cara de má como um bandido de cinema,
abrindo-o e fechando-o com um estudado ar e displicência. Compramos cerveja na delicatessen da esquina e Diega me contou
como uma noite havia cortado a garganta da mãe com uma lâmina como aquela.
Disse que tinha nascido em uma das fazendas de bebês de Mindanau, de uma mulher artificialmente inseminada com esperma de origem local. Diega bebê foi destinada ao mercado
americano de famílias pré-fabricadas. Arredondaram-lhe os olhos e suprimiram a melanina com nano processadores injetados
diretamente na placenta. Os pequenos instrumentos moleculares
tinham afetado seus olhos, deixando a pupila esquerda permanentemente dilatada. O pais americanos devolveram-na. A criança não satisfazia as expectativas; poderiam trocá-la por alguma outra coisa?
─ Fui enviada mais três vezes ─ explicou ─ mas as mamães
e papais sempre me mandavam de volta.
Quando já estava mais velha, a fazenda vendeu-a para um clube situado fora da Base Naval Americana, na baía de Subic, onde havia uma porção de papais que a queriam.
─ Aprendi a dançar, a enrolar um baseado e a trabalhá-los vigorosamente com as mãos, para que mais tarde a coisa fosse bem rápida.
Uma noite, estripou um dos fregueses e, usando todo o crédito do seu cartão reservou um vôo para os Estados Unidos. Antes de embarcar, entretanto, deu uma passada pela lebensborn
para abrir uma segunda boca em sua mãe natural. Quando pousou em Honolulu, a polícia estava à sua espera.
─ Era apenas uma criança! ─ afirmou, em tom queixoso.
Não pude percebe claramente se estava sentida por ter matado a mãe ou por ter sido presa por isso.
Comprei-lhe uma soqueira de uma prostituta dominadora da Rua Houston. Era grande demais para sua mão, mas deu um jeito de encaixar três dedos nos buracos certos, deixando o mindinho
solto entre os anéis e o arco apertado contra a palma da mão. Depois, encostou o soco inglês no meu rosto, pressionando o lado do meu queixo.
─ Você realmente matou sua mãe? ─ perguntei.
─ Não, meu pai ─ respondeu, sorrindo ─ Molestou minha irmã e eu, então estourei-o com o rifle de caça.
─ Fale sério!
─ Na verdade, mamãe e papai têm uma barraquinha de tacos em Dallas. Fui presa por vender PCP temperado com arsênico
para o filho de um policial.
Na vitrina de televisões de uma loja, a imagem dela com a soqueira empurrando meu queixo aparecia nas várias telas, de uma dúzia de ângulos diferentes, ligeiramente fora de esquadro. Fiquei imaginando que tipo de história teria inventado para fisgar
Cale.
─ É só comigo ─ perguntei ─ ou você sai por aí gozando a cara de todo mundo?
Diega sorriu e tirou a soqueira. Beijou-me onde antes estivera
pressionando.
─ É só com você, querido ─ retorquiu ─ Se fizesse com todos, não seria tão especial.
Roubou o último cigarro do meu casaco e fumou-o enquanto
caminhávamos de volta para casa.
Pensando agora no assunto, isso se parece com o tipo de brincadeira selvagem e estúpida que às vezes as crianças fazem sem saberem bem por quê. Quando tinha seis anos, morava em Queens. Costumávamos andar de bicicleta durante a noite nos estacionamentos escuros, tentando derrubar uns aos outros, desviando-nos como morcegos fantasmas dos blocos de cimento que demarcavam as vagas. Dizíamos uns para os outros que os estacionamentos eram antigos cemitérios cobertos de asfalto e que a finalidade das linhas amarelas era a de ajudar as pessoas a localizarem os antigos túmulos.
Diega, meu Deus, quero vê-la agora. Quero-a de volta naquele
cenário branco onde a conheci. Quero rachar meu crânio e tudo libertar, deixar fluir toda aquela brancura com a qual costumava sonhar no tempo das minas. Era com Diega que eu sonhava. Não com o branco, propriamente, mas com sua pre89
sença lá, dominando tudo, puxando as cordinhas e fazendo tudo funcionar. Branco dos nós dos meus dedos em todas as vezes que sonhei espancá-la, branco dos peixes fossilizados, branco do gelo, branco psicodélico, o branco dos dentes e das máscaras cirúrgicas, branco de luas novas e fosfenos, branco fluorescente, branco de uma chuva de fagulhas ─ cada minúscula nova mais quente que o inferno mas pequena demais para fazer alguma diferença, branco de pus, branco de larva, o branco da rendição,
o branco do olho aparecendo por entre pálpebras semicerradas
quando ela mordia o lábio inferior, tremia e deixava escapar aquelas vogais percussivas.
Nós três éramos como as crianças nos pátios de estacionamento:
coriscos de aço rasgando a escuridão, num vôo cego, por um terreno acidentado. Diega nos usou, a mim e a Cale, com nosso assentimento. Nós a usávamos, também, formando uma espécie de corrente perfeita. A única coisa perfeita da minha vida. Às vezes me perguntava se os Homens de Terno sabiam de alguma coisa do que se passava entre nós. Pareciam totalmente alheios ao que fazíamos uns com os outros no intervalo entre dois trabalhos, executando aqueles assassinatos rituais dos nossos
desejos. Às vezes, entretanto, suspeitava que essa impressão
era errônea, que os Homens de Terno sabiam exatamente o que estávamos fazendo; que haviam planejado para que tudo ocorresse daquela forma, decompondo o padrão de nosso vício coletivo em uma expressão binária de necessidade absoluta, jogando
todos os dados em um grande computador do governo, observando-nos em funcionamento, monitorando nossas ações, registrando-as sob a forma de diagramas, fluxogramas, uma curva
perfeita de obsessão.
Seria realmente possível que tivesse sido assim? Poderia um modelo computadorizado, responsável por nossa presença naquele tempo e naquele lugar, incorporar algoritmos tão complexos
e sutis que fornecessem um verdadeiro perfil de nossas almas? Suponho que fosse possível, mas com os Homens de Terno
todos mortos, era tarde demais para perguntar o que tinha dado errado.
Estava voltando de Sidney, após um trabalho que me tomara duas semanas. Estava vesgo de cansaço, a cabeça estourando,
literalmente arrasado depois de passar vários fusos horários
viajando naquele brinquedinho birmanês suborbital. Você sabe como é: dez gravidades; nenhum serviço de bordo. Estava
meio sonâmbulo quando cheguei ao aeroporto Kennedy, de modo que levei algum tempo para entender quando os Homens de Terno me disseram que ela se fora. Estávamos no carro da companhia. Fiquei olhando para fora, através dos vidros fumé e girei o seletor de rádio do carro, procurando sintonizar alguma coisa que me agradasse. Acabei me decidindo por um noticiário árabe em uma das estações da Rede Mundial e aumentei o volume
o suficiente para abafar a tagarelice irritante dos Homens. Finalmente calaram a boca e me deixaram no meu apartamento. Entrei, joguei minha mala num canto e fiquei sentado no escuro por um longo tempo, massageando uma dor excruciante na base do crânio. Ao amanhecer, acordei com aranhas passeando na superfície do meu cérebro e uma estranha nova batida animal pulsando no meu coração. Respirei fundo e comecei a chorar porque de repente compreendi o que os Homens de Terno tinham tentado me contar, e exatamente de quem era a nova pulsação que me haviam imposto.
Ultimamente, tenho preferido pensar que Diega vinha tentando
me alertar sobre o papel que, instintivamente adivinhara, me caberia desempenhar no nossa pequena tróica, acionando as rodas em algum canto obscuro do meu subconsciente com aquelas histórias sobre a lebensborn e o marinheiro que estripara.
Talvez, a seu modo, estivesse procurando tornar as coisas mais fáceis para mim, deixando-me saber que não consideraria aquilo como uma coisa pessoal, que compreendia que era assim que tinha que ser. Ela precisava fugir e eu tinha que segui-la. Foi quando me dei conta de que ela havia repetido tudo outra vez. Vivera uma representação do pesadelo naquela noite na cidade de Subic. Deitara com quem lhe havia sido designado, fizera com ele algumas daquelas brincadeiras confusas e sem sentido, para depois abandoná-lo com o pescoço quebrado e sem tostão, em alguma suíte mobiliada de quinhentos dólares por noite.
Diega Braga. A última vez que a vi, estava deitada ao lado do pobre Cale, todo quebrado, com a arma ainda na mão, em
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cima de um monte de lixo, ambos com as marcas de meus dentes.
Os Homens de Terno, que também matei, contaram-me o que sabiam antes de morrer. Diega e Cale nunca tiveram a mínima
chance. O cara que ela apagou era um mensageiro especial
envolvido em negócios com bancos suíços, deslocando importâncias
substanciais para homens que tinham uma relação profunda e espiritual com o dinheiro de outras pessoas. Quando Diega o matou, provocando a paralisação das ondas cerebrais do sujeito, um simples implante no córtex foi automaticamente ativado,
congelando imediatamente todos os seus bens. O cartão de crédito que Diega roubou dele não passava de um pedaço de plástico sem valor. Não poderia engraxar os sapatos com aquilo,
quanto mais comprar uma passagem de avião. Encontrei-os quando saíam de um clube na rua Bleecker onde estavam tentando
vender o cartão de crédito do suíço para alguns receptores locais. Dançamos juntos, então, nós três. No beco, em um tapete de garrafas de vinho quebradas e folhetos esvoaçantes, pintamos a cidade de vermelho.
A três mil metros de altitude e quase do outro lado do mundo, ainda posso sentir o seu calor. A aeromoça distribui travesseiros, serve café e oferece a opção de três estimulantes neurais recreativos. Desceremos na estação de Byrd dentro de uma hora.
“Uma aventura no verdadeiro âmago da terra” ─ era o que dizia o vídeo da agência de turismo ─ “Apreciem paisagens recobertas
de branco mais antigas que o próprio homem!”
Será fácil me livrar destes turistas imbecis depois que aterrissarmos.
Também não vai ser difícil afanar um carro de neve. Ainda me lembro do lugar lá na tundra onde os hidromineiros costumavam estacionar aqueles veículos. Com um deles poderei ir para bem longe nas montanhas, onde jamais me encontrarão e de onde não me sentirei tentado a sair para persegui-la. Esta é a diferença entre Diega e eu. Eu quis fugir. Não sei se a morte era realmente o que ela estava procurando, mas tenho certeza de que, no fim, pouco se importava.
Os Homens de Terno não tinham necessidade de me dar a pulsação dela, mas o fizeram. Diega e Cale não tinham necessidade de permanecer numa cidade que eu conhecia tão bem, mas permaneceram. Era bem típico dela ficar por ali brincando em cima do gelo mais fino que pudesse encontrar. Ou, quem sabe, não desconfiava de coisa alguma. Talvez fosse apenas outra alienada
como eu.
Não acredito quase em mais nada. Só sei dizer que a razão por que estou aqui, a razão por que matei os Homens de Terno não é por terem me acionado para liquidar meus próprios amigos.
Poderia ter poupado Diega e Cale da mesma maneira que vou poupá-la. (Ponha os ombros para trás, endireite o corpo e sorria. Ofereço-lhe sua pulsação de volta. Não a quero mais. Não posso suportar seu peso.) Para ser honesto comigo mesmo, sou forçado a reconhecer que a razão pela qual matei todos eles não foi nem porque Diega escolheu Cale, mas porque não escolheu a mim.Uma diferença sutil, porém importante.
Aqui, entretanto, estou em terreno familiar. Talvez esta confissão seja uma tentativa atabalhoada de tentar desligar estas
merdas de detectores de uma vez para sempre e ao mesmo tempo afugentar definitivamente os fantasmas da culpa. No momento,
vou guardar seus rostos no meu bolso junto com os de todos os outros dos quais me incumbi anteriormente e continuar fugindo. Os Homens de Terno também obedeciam ordens, você sabe; e os patrões não gostaram nada, nem um pouquinho, do que fiz com seus rapazes. Deixei uma verdadeira fortuna daquela água do âmago da Terra transbordando pelas beiradas do terraço,
litros e mais litros. Contemplei-a enquanto se tornava rósea em volta dos corpos, encharcando as camisas sociais bordadas com monogramas, os cabelos que boiavam e as pilhas de listagens
rasgadas. Lavei-me na água de um milhão de dólares e abandonei o silêncio quase religioso daquele açougue, fechando a porta ao sair.
Afundado em couro macio na primeira classe. Alguns assentos
à minha frente, uns bêbados, com pinta de executivos de nível médio, estão tentando passar uma cantada na aeromoça e estou morrendo de vontade de rasgar aquelas gargantas magras
e rosadas. A coisa na minha cabeça está rosnando para mim, avisando-me que estou faminto e de que seria fácil abrir
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você e beber-lhe o conteúdo. Tudo que teria que fazer seria dar meia volta e regressar, o que seria um truque interessante, considerando
que estamos a trinta mil metros de altitude. Quanto mais me afasto de você, mais desesperados os apelos da coisa em minha cabeça, zumbindo como uma vespa presa em uma campânula. Esta luz é um martírio. Minha pele é leite coagulado. Quando levanto minha mão, posso praticamente ver os ossos através dela. Você nunca saberá como está sendo difícil deixá-la. Se não fosse pelas drogas que a aeromoça sorridente me oferece a toda hora, jamais conseguiria.
Os estimulantes recreativos operam no sistema límbico, excitando receptores de glutamatos no hipocampo e na amígdala.
Memórias se apagam, dispersam-se como fumaça. Imagine mudar rapidamente de canal na Rede Mundial, cada imagem se superpondo à anterior. Crianças andando de bicicleta. Peixes fossilizados. Canivetes automáticos reluzentes. Lembro-me de que andei me sentindo mal antes da viagem para Sidney. Cheguei
a pensar que era uma gripe, mas agora percebo que estava sofrendo antecipadamente com a separação. Diega estava cortando
os laços que nos prendiam, deixando-me à deriva. Estava no banheiro lavando o rosto quando ela entrou e trancou a porta. Tocou-me e abriu me zíper perto da pia, envolvendo-me com as pernas. Transamos ali mesmo, no chão. Horas mais tarde, passando
pela alfândega, na Austrália, ainda podia sentir o odor da sua pele em minhas mãos. Atrás da sua cabeça, o branco dos azulejos parecia gelado e brilhante, emoldurando seus cabelos, como as paredes nas minas de gelo anos atrás; e quando pude ver o branco por entre as pálpebras semicerradas, tive a impressão fantástica de que dentro da sua cabeça havia um globo de puro cristal. Ainda sonho com aquela visão, pensando que se tivesse alguma maneira de penetrar no seu crânio, poderia varrer para sempre a motivação que determinou sua fuga, impedindo que ocorresse.
Da janela posso ver os campos gelados do Planalto Gelado Sul. Ainda sinto sua presença no subsolo, mantendo-os unidos sob o gelo, naqueles catres gastos de madeira. Deslizo minhas mãos pelas suas costas, cavando na tempestade de neve e bancos de gelo das suas carnes, abraçando-a naquele momento, escutando seu balbuciar no clímax com um outro homem. Imediatamente
antes de me deixar ela me deita no chão, abre o vestido e desce sobre mim, como a sombra de um corvo, puxando-me para ela. Sinto o frio dos ladrilhos nas minhas costas quando tira minha camisa pela cabeça. Estou bêbado e cego pela neve, captando a imagem do seu rosto em chibatadas coloridas que queimam como o interior do meu crânio. A coisa no meu cérebro está me cozinhando e estou com medo. Quando toco o solo, meus pés abrem buracos no gelo. Vão me seguir e terei que dançar com eles do mesmo modo que dancei com a pobre Diega. Entretanto, antes disso, antes que mergulhemos para sempre, juntos, nessa imensidão branca, direi a eles de uma vez por todas para que compreendam: voltei para casa.

Extraído de Isaak Asimov magazine

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A TURMA DA MÔNICA EM A ESCULTORAS DE CABEÇA




























TOP FIVE # 1 - MELHORES UNIFORMES DE SUPER HERÓIS


Nesta semana vamos eleger os 5 melhores uniformes de super-herois, e contar pequenas histórias de bastidores;

5º LUGAR: SUPERMAN
O Homem de Aço mudou pouco em relação ao uniforme desde sua criação em 1938, mas em 1986, uma sutil alteração fez toda a diferença. John Byrne foi convidado pela DC para rebootar a origem do escoteiro. Ele fez uma série de exigencias para que tocasse o trabalho e apenas uma não foi aceita(ele queria que Lara fosse enviada gravida na nave que trazia Kal El, que parisse na Terra, e que ela morresse envenanada por kriptonita pouco depois).No uniforme, ele fez uma mudança, tornou o diamante com o S maior, cobrindo quase todo o peito do Super, o que fez com que o uniforme ficasse ainda mais imponente.

4º DEMOLIDOR
O Homem sem medo, mudou bastante. Seu primeiro uniforme era amarelo e vermelho, e convenhamos, um dêmonio amarelo não é la muito intimidador... Ao adotar a roupa toda rubra, deu um toque mais clássico e transformou o defensor da Cozinha do Inferno alguem que merece respeito;

3º WOLVERINE
O mutante mais famoso da Marvel teve um mundaréu de uniformes(dava pra fazer um top 10 só com eles). O mais famoso é o amarelo e azul, mas o melhor deles com certeza era o marrom. Criado por John Byrne(mais uma vez ele!), o uniforme marrom era mais "animal", cores que lembravam o carcaju(o bicho que dava nome ao personagem) e não ao time de futebol americano Michigan Wolverines;

2º Batman(da série animada)
Batman é outro personagem que teve dezenas de uniformes diferentes(as vezes os uniformes variavam na mesma saga, por descuido dos desenhistas) mas o melhor é com certeza o uniforme da série animada de 1992. Visivelmente inspirada pela animação dos irmãos Fleischer dos anos 40, Paul Dini e Bruce Timm optaram por usar um uniforme cinza e negro, com a elipse amarela no peito, que era iconica e usada por influência do filme de 89(de onde usava a trilha sonora tambem na animação). Um traço minimalista e limpo que foi usado em todas as animações que vieram depois, que apesar de tornarem o uniforme mais dark, o cinza e preto marcou o personagem na tv;

1º Homem Aranha
O cabeça de teia tem o melhor uniforme de todos os tempos(coisa que a revista Wizard americana ja elegeu nos anos 90, e eu assino embaixo).
É uma roupa muito bem pensada. As teias começando no rosto e tomando conta de todo o corpo -por muito tempo o personagem contava ainda com teias na parte interna dos braços, como se ajudasse a planar em seus saltos, com a adição das duas aranhas(uma pequena e preta no peito e outra vermelha nas costas) formam a imagem classica do personagem. Esse uniforme foi criado basicamente por Jack Kirby, embora Steve Dikto tenha recebido os créditos por ter sido o desenhista das primeiras edições do Aranha.
O visual que ficou classico foi o desenhado por John Romita Sr, que deu mais "acabamento" a roupa, dando volume, deixando a mascara num estilo que é usado e reconhecido até hoje. Quando pensamos em Homem Aranha, é o desenhado por Romita Sr que vem a nossa mente;


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