quinta-feira, 2 de junho de 2011

AS FÁBULAS DE Jô SOARES

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A raposa e as uvas

Uma contrafábula


Passava certo dia uma raposa perto de uma videira. Apesar de
normalmente nunca se alimentar de uvas, pois se trata de um animal carnívoro e
não vegetariano, sua atenção foi chamada pela beleza dos cachos que reluziam ao
sol. Fenômeno estranhíssimo, uma vez que, geralmente, toda fruta cultivada é
revestida por uma fina camada protetora de inseticida e dificilmente pode refletir
a luz solar com tal intensidade. Sendo curiosa e matreira, como toda raposa
matreira e curiosa, aproximou-se para melhor observar a videira. Os cachos esta-
vam colocados muito acima de sua cabeça, e o animal (sem insulto) não teve
oportunidade de prová-los, mas, sendo grande conhecedor de frutas, bastou-lhe
um olhar para perceber que as uvas não estavam maduras.
— Estão verdes — disse a raposa, deixando estupefatos dois coelhos que
estavam ali perto e que nunca tinham visto uma raposa falar. Seu comentário foi
ainda mais espantoso, uma vez que as uvas não eram do tipo moscatel e sim
pequenininhas e pretas, podendo facilmente ser confundidas, à primeira vista,
com jabuticabas. Note-se por este pequeno detalhe o profundo conhecimento que
a raposa tinha de uvas, ao afirmar com convicção que apesar de pretas, elas eram
verdes. Dito isto, afastou-se daquele local.
Horas depois, passa em frente à mesma videira outra Canis vulpes (nome
mais sofisticado do mesmo bicho), mais alta do que a primeira. Sua cabeça
alcança os cachos e ela os devora avidamente.
No dia seguinte ao frutífero festim, o pobre bicho acorda
com lancinantes dores estomacais. Seu veterinário, chamado ime-
diatamente, diagnostica uma intoxicação provocada por farta ingestão de uvas
verdes.
MORAL: Nem todas as raposas são despeitadas.

Fábula da cidade grande

Fábula


O lobo e o cordeiro

Um pequeno cordeiro bem desavisado bebia água numa bica, calmo e
relaxado.
Um lobo aparecendo, não se sabe donde, já que numa cidade lobo não se
esconde, a fim de devorar o cordeirinho amável, foi logo dizendo num tom
desagradável:
— Porco, você está pondo a boca na torneira e isso para mim é uma
tremenda sujeira. Depois eu estou a fim de beber desta água. Falo isso no duro,
sem raiva e sem mágoa. — Foi a vez de o cordeiro acanhado dizer:

— Seu lobo, eu não estou pondo a boca pra beber e mesmo que assim
fosse, como o senhor pensa, informo que não tenho nenhuma doença.
— Pode ser — disse o lobo. — Mas ontem no morro, teu pai disse que eu
era um lobo cachorro.
— O senhor se enganou — disse o outro assustado. — O meu pai faleceu
já no ano passado.
— Então foi tua mãe — disse o lobo gritando, e o cordeiro falou quase
desculpando:
— Eu garanto. Mamãe? E impossível, coitada. Teve enfarte e morreu
quando foi tosquiada. — Respondeu o tal lobo sem titubear:
— Bom, não interessa! Só sei que vou te jantar!
Pegou o cordeirinho nervoso e aflito, preparou pro jantar e comeu ele frito.
MORAL: Mesmo nas mais agitadas megalópoles, onde às vezes falta água,
o lobo come o cordeirinho.


O corvo tchecoslovaco e a raposa tchecoslovaca

Parece que na Tchecoslováquia um famoso intelectual anônimo resolveu
adaptar para o tchecoslovaco a famosa fábula O corvo e a raposa. Dizem que
ficou mais ou menos assim:
(Qualquer semelhança com animais não-tchecoslovacos é mera
coincidência ou torpe propaganda imperialista!)
Corvo tchecoslovaco estava em árvore linda tchecoslovaca,
Com queijo tchecoslovaco no bico tchecoslovaco.
De repente, chega raposa tchecoslovaca e diz:
"Bom dia, camarada corvo tchecoslovaco; como você é
bonito!
Se você cantar lindas czardas, você é maravilhoso!"
Corvo tchecoslovaco, muito mais inteligente que corvo Capitalista francês, põe queijo tchecoslovaco
Embaixo de asa tchecoslovaca e canta.
Então raposa tchecoslovaca diz: "Bravo! bravo! agora mexe
asa!"
Corvo tchecoslovaco põe de novo queijo tchecoslovaco
No bico tchecoslovaco e mexe asa.
Então, raposa tchecoslovaca diz: "Bravo! bravo! escuta,
Camarada corvo tchecoslovaco, sem querer mudar de
assunto,
Você sabia que sua mulher está dando para o ministro de
Relações Exteriores da URSS?"
Corvo tchecoslovaco abre boca de espanto, queijo cai,
Raposa tchecoslovaca come.
MORAL: Mesmo que sua mulher dê para o ministro de Relações
Exteriores da URSS, mantenha a boca fechada!

Um comentário:

  1. Muito interessante a fábula de Jô Soares, pois segue os modelos das fábulas tradicionais, mas é bem contemporânea. Jô explora as diversas camadas narrativas, capazes de conferir um humor sofisticado ao texto. É contemporâneo ao mencionar os inseticidas agrícolas e, também, conversas gravadas de forma oculta(crítica política). A raposa tem um duplo sentido: ao animal e no sentido figurado, as pessoas astutas. Pode-se observar tb a citação da área científica, que faz parte do mundo moderno, como: animal carnívoro e não vegetariano( zoologia); uvas podem ser confundidas com jabuticabas(botânica); Canis vulpes (zoologia), intoxicação(medicina veterinária). Enfim, provoca ao leitor o riso.

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