sábado, 25 de junho de 2011

CONTOS HUMORISTICOS DE LEON ELIACHAR 2-EXTRAÍDO DO LIVRO O HOMEM AO CUBO


Garantia

A mulher virou para o lado, cobriu a cabeça com o tra­vesseiro e falou, com a voz sufocada:
— Desliga esse rádio, Élcio. Já é meia-noite e você pre­cisa ir embora.
Élcio nem dava bola. As palavras agora não eram tão importantes quanto os números. Aumentou o volume do rádio e falou:
— Só mais uma urna.
A mulher sentou-se na cama, indignada:
— Só quero ver a sua cara, quando o meu marido chegar.
Élcio sorriu:
— E quem é que você pensa que estou ouvindo no rá­dio, meu bem?

Papel duplo

Isabela era atriz de teatro, ia para o ensaio:
— Por que não vem comigo, amor?
Nelson, seu noivo, foi positivo:
— O último ensaio que vi, você estava muito entusias­mada, beijando aquele calhorda.
— Arte é arte, meu bem.
— Você está muito enganada. A arte tem limite.
— Discordo. A arte não tem limite.
— Mas a minha paciência tem.
— Deixa de ser bobo, você não confia em mim?
— Confio, não confio é nele.
— Você parece que nem conhece gente de teatro. No­venta e nove por cento não é de nada.
— E como é que posso saber que o sujeito que você beija não é o 1 por cento?
— Porque estou lhe dizendo que ele não é de nada. Isabela foi, Nelson ficou. Meia hora depois, ele não resistiu, ligou para o teatro:
— Por obséquio, a Isabela pode atender?
— Quem?
— Aquela moça que é beijada o tempo todo.
— Escuta, meu chapa: em cena ou fora de cena?
— Em cena, é claro!
— Então não sei quem é.

Surpresa


Zoroni era mágico há dezoito anos, há dois meses estava sem emprego. Sua mulher não se conformava:
— E agora, de que adiantam os seus truques? Quero ver é você tirar o bife da cartola. De conversa já ando cheia.
Uma noite, ele chegou em casa e teve a surpresa: a mesa estava posta, com os melhores pratos que pudesse pen­sar. Aparelho de jantar inglês, faqueiro de vermeil francês, cristais tchecos e toalhas de cambraia bordadas em Portugal. Ficou intrigado, mas não disse palavra. Comeu o que pôde, acendeu um cigarro, esparramou-se no diva, pensativo. Quan­do a mulher lhe perguntou por que estava tão triste, apro­veitou :
— Nada, não. É que arranjei hoje um emprego de faquir.
E ela:
— E isso é tão trágico assim?
— Trágico, não, humilhante. O mágico sou eu, mas quem faz a mágica é você.

Quem te viu e quem tevê

Sempre que ligava a televisão, Heloísa não resistia:
— Um dia, ainda serei garota-propaganda.
Dito e feito. Tanto insistiu que acabou arranjando um teste. Passou em todas as provas, de imagem, de som, de dicção, de interpretação, de arte dramática, de cinismo, de paciência, de irritação, de embaraço, de falta de jeito, de sor­riso parado, de gritinhos sexy, de apontar o dedo na cara, e até no "teste do jantar", que é o mais difícil — pois teve de jantar com o patrocinador. Um mês depois, começou a abra­çar geladeiras, eletrolas, fogões, máquinas de lavar, como se estivesse abraçando o próprio patrocinador. Em casa, coitadinha, estava impossível:
— Sabe, mamãe, arranjei um noivo que é ó-ó-ótimo! A mãe delirava de alegria, achava a sua filha um en­canto de moça. E ela não saía disso:
— Um noivo que é uma ma-ra-vi-lha!
E de adjetivo em adjetivo, foi comprando tudo: casa, automóvel, sítio, jóias, cachorrinho, peles, um ver-da-dei-ro-es-tou-ro! Em sua casa, ninguém mais trabalhava: família com patrocínio é fogo.


Tempo instável

Todos os dias de manhã, Eugênia vestia o short, pegava a barraca, despedia-se do marido e dizia que ia para a praia. Apesar da chuva, o marido não dava muita importância, pois não queria desmoralizar o seu emprego: trabalhava no Serviço de Meteorologia. Na véspera, Eugênia perguntava:
— Amanhã vai chover?
— Claro que não.
Não dava outra coisa. Às vezes, ele tentava sair pela tangente:
— Tempo instável, sujeito a chuvas.
Essa não. Ela queria saber, no duro, e quando ele afir­mava, dava sempre o contrário. Era discussão em cima de discussão. Até que um dia, ele resolveu ir à forra. Quando ela chegou na sala de short e barraca em punho, ele apontou a chuva na vidraça:
— Hoje não sai, não senhora, que a culpa do mau tem­po não é minha. Pedi demissão ontem, olha aqui o papel assinado pelo chefe.
Quando acabou de falar, apareceu o maior sol na janela.


Desafio

Valentim era pintor de nus artísticos. Sua mulher costu­mava dizer:
— Tantos anos na Escola de Belas-Artes, pra no fim dar nisso. Isso é lá profissão de gente?
Valentim respondia:
— O que você tem é ciúme, Margarida. Um dia, ela foi agressiva:
— É muita falta de imaginação de sua parte, Valentim. Só consegue ver mulher nua com um pincel na mão.
Ele deu um riso de piedade:
— O ciúme transtornou você, Margarida. Ela se queimou:
— Ciumento é você, quer apostar? Ele não recuou:
— Quero.
— Então me pinte nua, agorinha mesmo, e depois ponha o quadro numa exposição.
— Feito.
Ela tirou a roupa, ele espalhou as tintas. Dois meses depois, o quadro ganhou medalha de ouro numa exposição abstracionista.

A janela

Gracinda só gostava de dormir com a janela fechada. Seu marido, João, só gostava de dormir com a janela aberta. Moravam no térreo, o que vem provar a teoria de que os últimos serão os primeiros, pois no mundo de hoje começa-se a morar de cima para baixo — por causa das cascas de ba­nana que costumam jogar lá do alto. Mas isso não vem ao caso, o que importa é que quando apagavam as luzes para deitar, Gracinda e João mantinham sempre o mesmo diálogo:
— Estou com frio, João.
— Estou com calor, Gracinda.
Ninguém dormia. Um esperava o outro cochilar, levan­tava de mansinho e ia até a janela pra colocá-la a seu gosto. O outro levantava depois e fazia o contrário. Depois das qua­tro é que dormiam de cansaço, às vezes com a janela aberta, às vezes fechada. Só de manhã cedo é que conferiam pra ver quem ganhou a parada. Nesta noite, a cena se repetiu, como num vídeo tape. Gracinda falou sem sair debaixo do lençol, com a voz sonolenta:
— Fecha a janela, João.
Um vulto saiu por detrás das cortinas:
— João, não, Pedro.
No dia seguinte, deram por falta das jóias.


Cartas na mesa

Quando o ônibus parou, Dorotéia viu um anúncio de cartomante. Saltou depressa, decidiu arriscar a sorte. No velho casarão, com móveis antigos, uma senhora idosa espalhou as cartas em sua frente:
— Vejo um louro em sua vida.
Dorotéia se arrepiou, dentro dos seus quarenta e seis anos,
— Um louro alto e forte? E a cartomante, sinistra:
— Um louro baixo e fraco. Um papagaio.


O quarto

Quando Gertrudes ligou pra saber do quarto de frente para o mar, não esqueceu da exigência do locador: "para pessoa de fino trato".
— Por obséquio, cavalheiro, foi daí que colocaram um anúncio muito bem redigido, procurando uma pessoa para co-habitar com a sua distinta família?
— Em primeiro lugar, minha senhora, não tenho famí­lia, em segundo, não botei nenhum anúncio no jornal, em terceiro, isto aqui é um supermercado e tenho muito que fazer e vê se não amola.
Desligaram. Gertrudes tentou de novo, veio a mesma voz e a mesma resposta. Tentou diversas vezes, o sujeito já estava engrossando. Olhou o anúncio com cuidado, conferiu o número, a mesma voz sem educação. Gertrudes perdeu a paciência, acabou perdendo também o "fino trato", discou pela última vez:
— Olha aqui, seu cafajeste. Sei que o senhor não tem família, sei que o senhor não quer alugar um quarto, sei que aí é um supermercado. Mas presta atenção, seu imbecil, de outra vez que botar um anúncio no jornal vê se põe o telefone direito, ouviu?
E desligou, aliviada.


Acidente

Leocádia era dessas que tinham verdadeira alucinação por lingerie. Pra ela, o mais importante na linha da elegância era a roupa de baixo. Todos os dias, chegava em casa, abria os embrulhos na frente do marido, exibia calcinhas com bordadinhos e rendinhas de todas as cores e de todas as qualidades de tecidos. O marido não entendia:
— De que adianta tudo isso, se ninguém vê? Ela sorria, orgulhosa:
— É o que você pensa. Pode dar um ventinho na rua, sabe lá?
Um dia ele estava no escritório, quando o chamaram ao telefone. Era do Hospital dos Acidentados, pra lhe comunicar que a sua mulher havia sofrido um desastre. Correu pra lá e assim que fez a descrição da mulher, um enfermeiro disse pro outro:
— Ei, você aí. Leve este senhor naquele quarto. Está procurando aquela senhora sem calça.
Teve um troço, foi medicado ali mesmo. Duas semanas depois de Leocádia ter alta, ele continuou no hospital, em convalescença.


Amnésia

Zora chegou em casa tarde da noite, encontrou a porta encostada, foi diretamente para o quarto. Mudou de roupa no escuro, pra não acordar o marido, deitou ao seu lado. Quan­do percebeu que ele estava acordado, foi falando:
— Você me desculpe, Henrique, mas é que estou com amnésia profunda. Não me lembro de nada, perco a memória temporariamente e quando a recupero, não tenho a menor idéia do que se passou. Hoje peguei um ônibus pra vir pra casa, mas devo ter ido parar muito longe, não sei nem como explicar. Se você me perguntar como foi, não sei dizer.
A luz se acendeu e Zora pôde ver um homem nu ao seu lado exclamar:
— E agora, já recuperou a memória? Zora ficou perplexa, quase muda de emoção:
— Claro que já. E ele:
— Então pode ver facilmente que não me chamo Hen­rique, não sou seu marido e a senhora provavelmente deve ter entrado no apartamento errado.
Zora desmaiou. Dessa, nunca mais ela ia esquecer.

terça-feira, 21 de junho de 2011

OSSOS DO OFICIO-EXTRAIDO DE SELEÇÕES-CASOS HUMORISTICOS 2



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Sou médica e certa vez depois de um dia cansativo de trabalho, cheguei em casa e fui conversar com minha mãe, estavamos falando sobre cinema, quando eu querendo lhe contar sobre os efeitos especiais de um filme que tinha visto, disse ainda em espirito de plantão.
-A história não é boa, o que vale mesmo a pena, são os efeitos colaterais!

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Na audiência do caso de um coveiro, criente do meu tio. O Juíz lhe perguntou sobre a frequência dos enterros. O rapaz respondeu:
-No começo teve poucos enterros, mais depois foi melhorando!

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A gravação da secretária eletrônica da emprêsa de onde eu trabalho, dizia o sobrenome de minha colega Sarah errado. Ela pediu a correção, mas o encarregado disse:
-Descupe, a solicitação, deve vir por e-mail.
-Tudo bem, é só você me dizer como colocar no e-mail a pronùncia correta de Zuchschwerdt.

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Uma senhora um tanto surda, apresentou o meu pai ao restante da equipe do escritório.
-Andrew, Neville. Neville, Andrew.
Quando ela se foi , meu pai disse:
-Na verdade meu nome é Neil.
-Não se preocupe-disse o outro-Eu me chamo Allan, muito prazer.

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Convidamos os avós dos alunos para um dia Especial em nossa escola, que culminaria com uma foto em que todos posariam em frente a um mural colorido, na sala de história.Só depois do último clique, foi que percebemos que apareceu em cima da cabeça dos vovózinhos um galhardete, que dizia:
¨Descubra o mundo antigo¨.

sábado, 18 de junho de 2011

CONTOS DE ALFRED HITCHCOOK-HISTÓRIAS ASSUSTADORAS


Sentindo a iminência dum pedido de casamento Inger se preparou pro jantar com cuidado especial e sem sacrificar da pontualidade. Corey gostava que suas mulheres fossem bonitas, pontuais e, normalmente, alguns anos mais jovens que Inger podia alegar ser. Mas, ainda beirando os 30 anos, ela se recusara a sofrer pontada de desespero durante o namoro de dois meses.
Como um bom presságio, Corey a levou ao Windward. Era caro e íntimo. Velas bruxuleavam. Os martínis foram servidos em copos gelados. Depois da refeição, enquanto tomavam café e conhaque, os olhos dele se fixaram afetuosamente nos dela, sua voz baixou uma oitava. Se não fosse pelo fato da atenção dela se desviar subitamente a um homem de boca larga e sorridente, o momento poderia ter chegado. O sorriso do homem era tão efusivo e tão obviamente dirigido a Corey que ela teve certeza duma interrupção. Estava certa. O homem se aproximou da mesa e cortou o ânimo de Corey.
— Olá, Core. Pensei ter te reconhecido antes mas está muito escuro aqui dentro.
Ele presenteou Inger com uma exibição dos dentes brancos e compridos, alongando o rosto atarracado. Os olhos eram dum azul bem claro, o cabelo louro se encurvava no final de cada mecha. Inger olhou a Corey e sentiu um choque quase elétrico pelo que viu. Os músculos em torno da boca de Corey relaxaram, estavam tremendo.
— Olá, Ray. — Disse Corey, balbuciando depois de breve hesitação. — Esta é Inger Flood. Inger, Ray Chaffee.
Inger murmurou:
— Como vais?
— Que maravilha! — Disse Chaffee, com uma exclamação de admiração. — Tens muito bom-gosto, Core. Imagino que tiveram um jantar íntimo e extremamente agradável. E uma pena que tenhas de ir embora agora?, hem, Core.
— Pelo-amor-de-deus!, Ray.
— Mas tiveste sorte, Core. Eu poderia ter te reconhecido antes do filé. Foi filé, não é?, senhorita Flood. Core nunca teve muita imaginação pra comer.
— Ambos comemos um filé. — Declarou Inger, decidida a se manter controlada. — Também não tenho muita imaginação.
O sorriso se desvaneceu, deixando uma expressão de malícia afável.
— Vamos logo, Core. — Disse Chaffee, a voz musical. — Trates de ir embora. Deixes o conhaque. O terminarei por ti. Ainda tens crédito aqui. Não é? Pois passes na caixa e avises pra porem a nota em tua conta. Vamos, Core, te mexas!
O choque de Inger se transformou em perplexidade. Corey estava se levantando.
— Inger, lamento muito...
— Lamentas? Mas o que está acontecendo?
— Tenho de ir embora. — Murmurou, desesperado. — Telefonarei a ti mais tarde. A tua casa.
— Nada disso! — Interveio Chaffee, bruscamente. — Chega de telefonema nesta noite, Core. Pares de financiar a companhia telefônica. Vás a casa e te deites. Amanhã... Ora! Veremos o que se poderá fazer amanhã.
Inger começou a se levantar também mas, inacreditavelmente, a mão do estranho estava em seu ombro, a empurrando de volta à cadeira.
— Ficarás aqui, senhorita Flood. Não precisas ter pressa.
— Mas o que é isso?! — Disse Inger, finalmente sentindo raiva. Corey, queres fazer o favor de dizer a esse homem...
— Não precisas fazer onda. — Disse Chaffee, suave e zombeteiro.
Se sentou ao lado de Inger. Corey hesitou mais um instante, até que Chaffee lhe sacudiu a mão bruscamente, num gesto autoritário. Corey se virou, como se atingido por um chicote invisível e se encaminhou à porta, a tensão estampada nas costas. Inger fez outra tentativa de se levantar mas Chaffee a segurou no cotovelo.
— Fiques, por favor. Não vás ainda. Não é agradável ficar sentada aqui sozinha.
— Não ficarei sentada sozinha. — Disse, rispidamente. — Nem contigo. E tires a mão de meu braço ou começarei a gritar. Poderás descobrir o que isso significa pra teu crédito.
Não havia sinal de Corey na rua. Inger esperava que surgisse de repente num portal e explicasse a brincadeira. Mas, exceto por um táxi parado a alguma distância, a rua estava deserta. Fez sinal ao táxi.
Na manhã foi despertada pelo telefone e não pelo despertador.
— Inger?
— Vás ao Inferno!
— Não posso te culpar por estar tão zangada. — Murmurou Corey. — Não posso te explicar agora mas prometo que ainda o farei. Eu não sabia que Chaffee estava no restaurante. Pra ser sincero, nem sabia que estava na cidade. Pensei ter me livrado do filho-da-puta durante seis semanas, que sua companhia o tivesse enviado à América do Sul numa missão especial.
— Ó, Corey, te cales! — Exclamou Inger, se sentando na cama. — Foi uma brincadeira de mau-gosto e ainda não estou completamente desperta pra ouvir um pedido de desculpa.
— Queres almoçar comigo?
— Não.
— Por favor!, Inger.
O encontrou num restaurante do qual nunca ouvira falar antes, num bairro fora de mão. Não fez conexão entre a obscuridade do restaurante e Ray Chaffee até que tateou o caminho no interior escuro pra alcançar a mesa isolada de Corey, no fundo.
— Quero que me digas uma coisa, Corey. Estás te escondendo daquele homem?
— Como assim?
— Este buraco que escolheste parece ser freqüentado apenas por curtidores portugueses e gente parecida. O escolheste apenas por causa de teu amigo?
— Não digas bobagem. — Corey sorriu. — É um restaurante agradável e sossegado. Muito bom pra namorar.
Ele a beijou na boca, obtendo uma retribuição apenas parcial. Depois pediu os drinques e, sem esperar a pergunta, tratou de responder:
— Claro que foi uma brincadeira o que aconteceu ontem na noite. Mas é uma coisa tão estúpida que quase desafia explicação.
— Mas tentes explicar.
— É uma espécie de aposta, uma brincadeira permanente que tenho com Chaffee.
— Mas quem é? Trabalhas pra Chaffee? É teu patrão?
— Não. É apenas um amigo, usando a palavra no sentido mais amplo. É engenheiro de computador. Estivemos juntos na universidade. Chaffee, eu e mais alguns outros tínhamos uma roda de pôquer que acabou sendo dissolvida por dois ou três casamentos. Sabes como são essas coisas.
— Não. Não sei. A maneira como aquele homem ordenou que saísses. E a maneira repulsiva como obedeceste...
Corey se recostou nas sombras e riu. O divertimento parecia genuíno mas Inger não estava convencida.
— Devo ter parecido um idiota. Mas tinha de ser assim, meu bem. Não posso esperar que compreendas. Tudo o que espero...
Abruptamente parou de falar.
— O que é?
— Não espero alguma coisa agora. Mas dentro de dois minutos...
— O que mudará em dois minutos?
— Talvez muita coisa.
Corey meteu a mão no bolso e tirou uma caixa pequena, revestida de veludo. Inger prendeu a respiração, enquanto ele acrescentava:
— Te lembras do que te falei daquela débil-mental de quem estava noivo?
— Leila?
— Isso mesmo, Leila. E te lembras de que falei que devolveu o anel de noivado?
Inger ficou rígida enquanto ele levantava a tampa, mas a caixa estava vazia.
— Não estou entendendo.
— Eu não permitiria que usasses o maldito anel daquela mulher. Passei na joalheria nesta manhã e acertei uma troca. Podes passar lá a qualquer hora e escolheres o anel que quiseres. Isso é, se quiseres.
Inger olhou da caixa vazia ao rosto dele mas outra imagem se interpôs.
Era um garção, carregando um telefone vermelho.
— Mas o que é isso? — Resmungou Corey. — Deve ser um engano.
— Não, senhor — declarou o garção. — É mesmo pra ti, senhor Jensen.
Corey pegou o fone e disse um alô perplexo. A centímetros de seu ouvido, Inger ouviu a voz metálica de Ray Chaffee:
— Passarinho, passarinho, por que fugiste de casa? Ela está pegando fogo e teus filhos morrerão.
— Ray, seu miserável!
— Estás sendo insolente, meu velho. E sabes que não tolerarei insolência.
— O que queres? Como soubeste que eu estava aqui? Estás me seguindo de novo?
— Caias fora daí, Corey. Tua presença num lugar assim me ofende. Estou no outro lado da rua, numa cabina telefônica. Espero te ver passar a porta dentro de dois minutos. Não, serei camarada: Dou três minutos.
— Corey, desligues esse telefone! — Interveio Inger, a cabeça zumbindo.
Foi exatamente o que Corey fez. Inger pensou que a brincadeira terminara mas estava enganada. Corey estava largando o guardanapo em cima da mesa e empurrando a cadeira a trás.
— Escutes, Inger...
— Não! Não me digas! Irás mesmo embora?
— Tenho de ir, meu bem. É uma coisa que não posso evitar. Tomes aqui! — Pôs a caixa de veludo na mão dela. — O nome da joalheria está escrito na parte de dentro da tampa. Talvez possas passar lá ao voltar a casa nesta noite.
— Corey. — Disse ela, incisivamente — Se saíres daqui agora e não me explicar por que...
— Peças algo pra comer. — Ele lançou um olhar nervoso à porta e largou uma nota de 10 dólares em seu prato. — Peças rosbife. É muito bom aqui. Ligarei a ti mais tarde.
— Se fores embora agora, não quero que me telefones mais tarde!
Mas ele foi.
Inger não pediu o almoço. Usou o dinheiro pra pagar os drinques e foi embora sem se impressionar com o grunhido de insatisfação do garção. Chegou faminta ao escritório às 3h e comeu uma torta horrível comprada no carrinho de café.

Corey apareceu no apartamento dela, sem avisar, em volta das 22:30h. Inger já se vestira pra deitar, com uma camisola tão transparente que a situação poderia ser provocadora. Mas o ânimo de Corey e também o dela, se diga de passagem, impediam qualquer coisa além de conversa e uísque. Se sentaram na pequena sala de estar, um tanto desarrumada.
— Muito bem, Inger. Contarei toda a história. Não o podia fazer antes, pois isso fazia parte do acordo. Mas estive com Ray e concordou. Até gostou da idéia de saberes, o que proporcionou uma emoção vulgar ao desgraçado.
Parou de falar, terminou o escocês que tinha no copo. Inger esperou recomeçar:
— Sou seu escravo, Inger.
Ele se levantou pra tornar a encher o copo, usando a ação como pretexto pra não a fitar.
— Sei que parece absurdo, mas não é tanto assim. Não estou querendo dizer que me comprou num leilão de escravo ou que temos alguma relação sexual maluca no estilo de Krafft-Ebing. Ambos somos corretos, embora essa seja uma maneira um tanto exagerada de descrever Ray Chaffee. O que estou querendo dizer é que tenho de fazer tudo o que mandar, praticamente tudo. Claro que nada faria que me causasse um mal físico. Não pode me mandar, por exemplo, pular duma janela. Isso não estaria nas regras.
— Regras?
— Sou escravo há quase 10 meses. Restam menos de 10 semanas pra que tudo acabe. Mas não precisas ficar preocupada. Pensei muito em ti, pensei em nós, nesta situação, decidi que não deveria te encontrar, até que este maldito ano chegasse ao fim. Mas com Chaffee viajando, pensei que poderia correr o risco.
— Correr o risco de quê?
— Afinal, estava na América do Sul. Deve ter morrido de raiva por ser enviado até lá justamente agora. Estava começando a gostar de ter um escravo, de poder mandar nalguém e ser sempre obedecido. E se tornava mais mesquinho a cada dia, pensando em novas maneiras de me fazer sofrer.
— Não posso estar ouvindo direito, Corey. Devo ter me deitado há uma hora e tudo não passa dum sonho.
— No caminho a cá — continuou Corey, muito tenso — tentei decidir o que era pior: Contar a ti ou nada dizer. Qualquer que fosse a decisão eu poderia te perder. Não queres outro drinque?
— Não.
— Pois quero.
Corey foi encher o copo mais uma vez. Quando voltou estava disposto a enfrentar os olhos dela.
— Inger, contarei toda a verdade. Há cerca de 10 meses, Chaffee, eu e mais dois caras tínhamos uma roda de pôquer e garotas.
— Não mencionaste as garotas antes.
— Elas jamais atrapalhavam o pôquer. Seja como for, estávamos todos sentados em torno duma mesa numa noite, bebendo. Começamos a falar sobre escravidão. Isso é, a escravidão nos dias atuais. Ainda existe, sabes. Há muito tráfico de escravo no Oriente Médio e lugares assim. Houve uma coisa em que, todos concordamos. Ou melhor, duas. A primeira foi: A escravidão não é horrível? Nada há de original nisso, é claro, mas é o primeiro sentimento de quem sempre viveu à sombra da bandeira ianque. Mas também concordamos que a escravidão podia ser terrível pro escravo mas era, certamente, algo muito bom pro amo. Pondo de lado todas as considerações morais, o que há de tão ruim em ter dois ou três escravos? Encaremos a verdade: Devia ser uma coisa maravilhosa. Era o que fez a escravidão tão popular durante muitos séculos, mesmo em civilizações supostamente esclarecidas, como a grega e romana. Sabiam que era moralmente errado o que faziam mas não dispunham de máquina pra tornar a vida confortável e por isso justificavam a prática. Mesmo hoje, penses em todas as pessoas que vivem disputando criados. Te lembres das mulheres gordas nos clubes femininos, passando a metade da vida dando ordens às criadas e a outra metade falando delas. E quando uma delas diz Minha Bernice é uma jóia preciosa, está se referindo à criada mais como uma escrava, mais como se fosse uma preta escrava sulista dos velho tempo do que como empregada remunerada. Não estou certo?
— Por favor, Corey, me poupes os comentários sobre a injustiça social.
— Está bem. Está bem. O que estou querendo dizer é que a escravidão é atraente. Chaffee até encontrou uma citação de Tolstói a respeito, embora eu ache que só a procurou depois da aposta.
— Aposta?
— É sobre isso que quero falar: A maneira como tudo começou. Sabes quem foi Tolstói. Uma espécie de santo russo, defensor da liberdade individual. Só que escreveu, em seu diário, que a escravidão é um mal, mas um mal extremamente agradável.
— Mas ainda continua a ser um mal. Não é?
— Por que é involuntária. Os escravos não escolhem ser o que são. São arrebanhados por traficantes ou vendidos pelos próprios pais, como acontecia com as meninas na China antiga. Ou eram capturados em guerras, como no caso dos gregos e romanos. Mas se a escravidão fosse voluntária, se fechando o vazio moral...
— Foi isso o que fizeste? Voluntariamente te ofereceste pra ser escravo?
— De certa forma, Inger. De certa forma. Foi assim que a noite terminou, numa espécie de aposta que Chaffee e eu fizemos. Bebêramos muito, mas mesmo, assim definimos os termos, as regras e condições. Uma das regras era o sigilo e é isso o que está me permitindo violar nesta noite.
— Estás falando sério? Não é brincadeira?
— Não, Inger, não é brincadeira. Infelizmente, é a pura verdade. Chaffee apostou que eu não poderia sobreviver como seu escravo durante um ano. Mas o prazo está quase acabando. Eu ganho, ele perde e as coisas voltam ao normal. Mas eu não poderia desistir agora. Entendes? Depois de 10 meses eu seria louco se desistisse, mesmo que me pedisses, mesmo que impusesses uma condição pra encher aquela caixa que dei a ti.
— Não achas que estás querendo demais?
— Eu não poderia desperdiçar esses 10 meses, Inger. Chaffee me fez conhecer o Inferno e pode se tornar ainda pior, mas não lhe darei a satisfação de desistir antes que o ano termine.
— Pareceis duas crianças estúpidas! Deveríeis levar uma boa surra!
— Não foi tão terrível assim no começo. — Disse Corey, olhando o teto. — Chaffee não estava acostumado a ter um escravo. A princípio me pedia pra fazer as coisas, era polido, sempre usava por favor. E todas as ordens eram ínfimas, como fazer pequenos serviços, ir à biblioteca, chamar táxi. Era um trabalho fácil.
— E depois mudou?
— Não podia me pedir pra fazer algo que pusesse em risco minha saúde, emprego ou dinheiro...
— Mas podia te humilhar. Eis algo que podia fazer.
Não podia me obrigar a fazer coisas malucas em público. Nada que pudesse fazer com que a polícia me prendesse. Mas qualquer outra coisa. Sou obrigado a fazer ou não seria seu escravo. Entendes? Um escravo obedece sem questionar. Isso é a própria essência, a incapacidade de recusar as ordens do amo. Mas Chaffee levou muito tempo, quase meio ano, pra descobrir alegria nisso.
— Alegria?
— Isso mesmo. — Corey revirava o copo entre as mãos, interminavelmente. — Há uma alegria nisso, quase um êxtase. É mais do que a conveniência de ter alguém pra executar todas as ordens. No fundo há algo de poder. É por isso que as pessoas se digladiam buscando poder político, social, financeiro. Qualquer um. É o prazer de dominar as pessoas, a fazer obedecer pelo simples ato de estalar o chicote.
Inger deixou escapar um muxoxo de repulsa.
— É verdade, meu bem. Sou o escravo e é o amo, mas posso perceber o que faz. O poder total sobre outro ser humano. Depois de seis meses Chaffee começou a sentir que o tempo se escoava rapidamente e foi ficando desesperado e mesquinho. As ordens se tornaram mais brutais e mais freqüentes. Foi nessa ocasião que deixamos de ser amigos e nos tornamos o que somos agora: Amo e escravo. Apenas isso, nada mais que isso. E foi também nessa ocasião que começou a gostar.
Inger se aproximou dele, parecendo inebriada e linda.
— E não desistirias? Nem mesmo que eu pedisse?
— Já te disse. Se tivéssemos nos conhecido há cinco ou seis meses, antes de Chaffee começar a estalar o chicote, talvez eu estivesse disposto a desistir, a perder todos os meses que já investira. Mas não agora.
— Corey, me amas?
— Por-deus-do-céu! Ainda não disse isso?

Mais tarde, ela pediu de novo.
— Não, Inger, não é possível. Achas que aquelas situações nos restaurantes foram horríveis? Pois já houve outras bem piores. Tenho feito todos os tipos de serviço sujo. Já fui seu valete, mordomo, faxineiro. Já abri mão de muitas noites, de fins de semana, até das horas de almoço, sempre que assim quis. E então passou a me seguir em toda parte, me obrigando a renunciar a hábitos, prazeres, amigos.
— E às mulheres também?
— Me obrigou a romper com todas as namoradas. Houve uma ocasião, quando procurou a garota com quem eu saía e contou o que eu era.
— Pensei que as regras básicas.
— Só se aplicam a mim. O amo não precisa guardar segredo. Só o escravo está obrigado. E naquela noite contou a ela. E a débil mental...
— Foi Leila?
— Isso mesmo. E talvez Chaffee me tenha feito um favor nesse caso. Mas não esquecerei a maneira como nos abordou.
— E disse a ela que eras seu escravo?
— Disse e provou. Me obrigou a rastejar na frente dela. E aquela débil mental riu. Achou que era engraçado, hilariante. Pediu a Chaffee que a deixasse ter um pouco de ação, queria brincar também. E no resto da noite fui também escravo dela, porque isso é parte do acordo. Se tens um amo passas a ser escravo de toda a raça humana.
— Oh, Corey! — Inger pressionou o rosto contra o ombro dele. — Como pudeste agüentar isso? Por que não o mataste? Eu teria esmagado a cara dele e a dela também!
— Tens razão, Inger. Os escravos se revoltam. E isso faz parte da diversão. Só que eu não o podia fazer. Entendes? Havia investido demais.
O telefone tocou. Já passava de meia-noite e o telefone de Inger era normalmente silencioso naquela hora.
— Devo atender? — Sussurrou ela. — achas que é...
— Tenho certeza que é.
Inger atendeu e a voz de Ray Chaffee disse, suavemente:
— Como vais?, boneca. Estás com o ouvido doendo? Nosso garotinho já chorou todas as mágoas?
— Estou contente, que tenhas ligado, senhor Chaffee. — Disse Inger. — Muito satisfeita. Assim tenho a oportunidade de dizer o que penso a teu respeito.
— Poupes teu fôlego. — disse Chaffee, friamente. — Me deixes falar com o rapazinho.
— Só depois de me ouvires.
— Me enches o saco e eu descarregarei em cima dele. Estás entendendo?, boneca.
Inger hesitou um instante mas acabou passando o fone a Corey. E o ouviu dizer:
— Está certo. Já entendi. Está bem. Está bem. Eu disse que faria e farei.
Suspendeu o telefone, na direção de Inger. Mas não a olhou, enquanto dizia, a voz sem inflexão:
— Ray quer que eu vá embora agora, meu bem. Mas não quer que fiques solitária. Disse que terá o maior prazer em vir até aqui pra fazer companhia a ti. Disse que conhece uma maneira de te manter quente e satisfeita.
— Corey!
— Eu agradeceria se concordasses, Inger. Não posso te obrigar, é claro, mas consideraria um grande favor a mim se deixasses Ray subir agora.
Via fone ela podia ouvir o risinho seco e musical de Chaffee.
— Saias daqui! — Gritou Inger. — Sumas da minha frente!, Corey.
— Por favor, Inger. Poderia ao menos falar com ele?
Ele estendeu o fone a mais perto mas Inger recuou. Corey engoliu em seco e tornou a aproximar o fone de sua boca, dizendo:
— Com todos os diabos, já fiz o que mandaste! Mas ela não quer falar contigo e isso é uma coisa que não posso controlar!
Desligou e se virou a Inger, com os olhos marejados de lágrima.
— Prometi que diria isso, meu bem. Era o preço por te contar a verdade.
— Não me ouviste? Sumas daqui, Corey. Não te quero aqui. E nunca mais quero tornar a te ver. Nunca mais!
Corey deu de ombros. Não era um gesto de indiferença mas de resignação. E depois saiu, fechando a porta sem fazer barulho.

Inger não tornou a ter notícia dele até o fim de semana. Corey telefonou na tarde de sábado e falou cum sussurro de conspirador:
— Estou na galeria Frederick. Na Médisson. Inverti as posições desta vez e passei a o espionar. Seu apartamento fica no outro lado da rua e acabei de o ver saindo com o carro. Assim, podemos nos encontrar em segurança.
— Pode ser seguro mas não significa que eu queira te ver. — Disse ela, friamente.
Mas Inger acabou indo à galeria. Estava cheia de paisagem ondulante. Corey a recebeu cum sorriso triste e disse:
— Esqueci de pedir que trouxesses dramamina.
Em vez de rir Inger começou a chorar, embora não alto demais que incomodasse os demais freqüentadores da galeria. Corey a levou a um canto, protegendo a ambos com o cardápio, enquanto dizia.
— Tenho uma idéia. Meu acordo com Chaffee durará mais nove semanas. Não quero te ver até lá. Nem tentarei te encontrar. Acabaria descobrindo. E isso só serviria pra piorar a situação.
— Nove semanas? Mas isso é terrivelmente injusto!, Corey.
— Mas é o único jeito. É melhor o fazer pensar que rompemos, pois só assim nos deixará em paz. Te deixará em paz. Depois disso, caso não tenhas conhecido outro homem que te interesse, até lá...
— Seu idiota! — Disse ela, tragicamente, o segurando nas lapelas. — Achas que eu poderia querer algum outro?
— Vamos até a joalheria, Inger. Agora. Se estiveres com meu anel no dedo, talvez isso faça uma grande diferença.
Ela escolheu um diamante solitário, sem baguete ou engaste fantasioso. Corey achou que o anel era desnecessariamente austero, mas Inger queria assim mesmo. Voltando a casa o lembrou de que ainda não fizera um pedido de casamento formal. Ele disse que queria o cenário romântico apropriado. Assim, subiram a rua 59 e pegaram uma charrete, entrando no parque. Inger chorou durante a maior parte do tempo, mesmo depois do pedido de casamento. O abraçou freneticamente, sussurrando:
— Corey, vamos juntos até minha casa. Não me deixes agora. Viste aquele homem horrível se afastando. Talvez não nos incomode. Venhas comigo, por favor, Corey.
Foram ao prédio de apartamento em que Inger morava. Um pequeno conversível marrom estava estacionado perto do toldo da frente. Ray Chaffee não estava ao volante mas Corey conhecia o carro.
— Está aqui, Inger. É melhor eu ir embora.
— Não, Corey, por favor! Pode estar esperando no saguão ou no corredor, lá em cima. E tenho medo dele!
— Não precisas ter. Não tem como te dominar. Se tentar algo digas que chamarás a polícia. Se ameaçar contra mim digas que não te importas, que já rompemos.
— Isso é horrível!
— Telefonarei a ti mais tarde.
Corey se virou e se afastou rapidamente. Exatamente como receara, Inger encontrou Chaffee esperando, sentado numa poltrona azul bastante velha, no saguão.
— Boa noite, senhorita Flood. Por acaso viste nosso amigo, senhor Jensen?
— Não, não tenho visto teu amigo e também não quero ver. Nunca mais!
— Nesse caso não estarias procurando um novo amigo? — Ele sorriu. — Não sou uma mercadoria tão desprezível assim. Talvez um pouco suja mas ainda capaz de prestar bom serviço.
— Boa noite. — disse Inger, quando elevador chegou. Mas ele pôs a mão na porta.
— Não comeces com brincadeira, senhorita Flood. Onde estás escondendo o rapazinho? O meteste no armário ou debaixo de tua cama?
Inger ficou parada. Havia um porteiro nas proximidade, provavelmente lendo o Daily News na frente do elevador de serviço. Pensou em o chamar mas acabou mudando de idéia.
— Está bem. Por que não sobes e verificas pessoalmente? De qualquer forma, preciso perguntar uma coisa.
Ele ficou surpreso. Durante um momento Inger o deixou desequilibrado mas, entrando no apartamento, se recuperou e passou o braço na cintura dela. Inger deu um passo de dança pra se desvencilhar e disse:
— Quero que me faças um favor. Canceles essa aposta que fizeste com Corey.
Ele ficou desconcertado e divertido.
— Queres que eu liberte o escravo? Que emita uma proclamação de emancipação?
— Isso mesmo. Já está cansado da brincadeira e acho que o mesmo acontece contigo.
Por mais estranho que pudesse parecer, o sorriso se desvaneceu.
— Queres saber duma coisa? Tens toda razão. Se tornou um fardo terrível, não apenas ao pobre Corey mas também a mim. Sabia que dá muito trabalho ter um escravo? É uma responsabilidade e tanto. É como herdar uma grande fortuna. A pessoa fica na obrigação de ter sempre de fazer algo a propósito. Acordo, às vezes, durante a noite, tentando imaginar como poderei usar Corey no dia seguinte. Parece doentio. Não é? Mas provavelmente estás pensando que sou doente. Corey deve ter dito que sou mesquinho e brutal.
— E não é verdade?
— Todos os amos parecem mesquinhos e perversos a seus escravos. Mas não te preocupes. O velho Corey terá o que merece.
— Quanto vale?
— Como?
— Quanto vale vossa aposta? Estou disposta a fazer um acordo, senhor Chaffee.
— Não sei do que estás falando.
— Estás apavorado com a possibilidade de Corey completar um ano de escravidão. Não podes deixar de tentar imaginar as coisas mais horríveis pra o obrigar a desistir. Mas também tenho direito a Corey. E se fizeres o que eu disser, darei um jeito pra que fiques com teu dinheiro.
Tornando a sorrir, ele perguntou:
— É uma proposta?
— É, sim. Se suspenderes a aposta, imediatamente, prometo que receberás até a última moeda que Corey ganhar.
— Achas mesmo que podes controlar o rapazinho à vontade? Mas que coisa interessante!
Chaffee passou a mão no cabelo louro e liso. Então foi avançando, lentamente, em direção a Inger.
— Queres saber duma coisa? Recomendo que experimentes outra forma de persuasão. Não podes compreender como tenho pouco interesse por dinheiro.
As mãos dele estavam em cima de Inger, que deu uma volta com o corpo e se descobriu nos braços dele. Chaffee era mais forte do que parecia e ela ficou apavorada. O golpeou com a mão esquerda, no rosto. Bateu com toda força e sentiu a ponta do diamante cortar a carne. O olho se avermelhou e inchou quase que no mesmo instante. Chaffee soltou um berro de dor e cobriu o rosto cuma das mãos.
— Me machucaste! — Gritou ele, furioso. — Sua estúpida! Por que tinhas de fazer isso?
Ele tirou do bolso um longo lenço impecavelmente dobrado e o comprimiu contra o rosto. Olhou depois o vestígio de sangue no lenço. Empalideceu e Inger chegou a pensar que ele desmaiaria.
— Sua estúpida! — Repetiu Chaffee.
Ele tornou a comprimir o lenço contra o rosto e saiu pela porta. Inger olhou o anel de noivado em seu dedo, tocou no diamante e disse em voz alta:
— O melhor amigo duma mulher.

Ela não sabia que horas eram quando as batidas começaram! Sabia apenas que não era uma hora oportuna pra alguém fazer todo aquele tumulto na porta de seu apartamento. Olhou o mostrador luminoso do relógio no criado-mudo. Já passava de três horas da madrugada. Pegou o roupão no pé da cama e foi à sala, querendo apenas silenciar aquelas batidas terríveis e obscenas em sua porta. A abriu e deparou com os dois, Chaffee e Corey. Chaffee sorria horrivelmente. Havia algo disforme no sorriso, algo no rosto que pertencia ao nevoeiro dum pesadelo. Inger levou um momento pra descobrir que o problema estava no rosto. A face estava inchada, meio arroxeada, a pele lustrosa e esticada. Desviou a cabeça e olhou a Corey, imaginando por que romperiam o sossego de sua noite.
Depois que todos foram à sala de estar, Corey encontrou o interruptor que inundou a tudo com uma claridade desagradável.
— O que aconteceu?, Corey.
— Inger... — A voz era sufocada, os punhos estavam cerrados. — Que deus-me-ajude agora, Inger. Não deverias ter feito o que fizeste...
— Digas a ela. — Ordenou Chaffee.
Corey estendeu o braço e tocou no braço dela.
— O machucaste, Inger. E poderia ter sido um ferimento muito grave.
— Diga a quem ela machucou. — Ordenou Chaffee.
— Ao mestre. — Disse Corey, os dentes cerrados. — Olhes o que fizeste com ele, Inger. Estás vendo?
— Me largues!, Corey. — Disse Inger.
— E agora digas a ela. — Acrescentou Chaffee. — Vamos, Corey, diga à senhorita Flood o que tem de fazer.
— Não te zangues comigo, querida. Depois desta noite não irei. Prometeu que nada mais haveria depois desta noite. Te deixaremos em paz. Nós dois. Mas tens de o fazer.
— Fazer o quê?
— Dar um beijo. — Disse Corey. — Sinto muito, Inger. Beijes o olho. O machucaste. Está realmente muito ferido. Beijes o olho, Inger!
A empurrava em direção a Chaffee, forçando o rosto dela a encontro do olho ferido. Chaffee estava sorrindo. Só que não era um sorriso mas uma máscara de morte, um risus sardonicus. Inger gritou e bateu em Corey, que tentou segurar suas mãos. Inger podia ver o sofrimento estampado no rosto dele. O detestava e ao mesmo tempo sentia pena. Corey conseguiu finalmente imobilizar os pulsos dela e estava gritando alguma coisa a Chaffee. Inger ficou inerte, enquanto Corey a conduzia ao sofá. Ela fechou os olhos e ouviu Corey dizer outras coisas a Chaffee, meio irado, meio apaziguador. Ela não abriu os olhos até ouvir Chaffee dizer:
— Muito bem, rapazinho. Já cumpriste teu dever.
Inger virou a cabeça e divisou Chaffee se encaminhando à porta. E Corey o seguiu. O escravo, obediente, cumprida a tarefa, acompanhava o amo. Saíram, deixando Inger sozinha.

Setembro passou e depois a maior parte de outubro.
Inger só teve notícia de Corey uma vez. Era uma carta, mal datilografada no papel timbrado do escritório. E dizia:
Inger
Sei que agora me odeias. Faz sentido dizer que eu te amo? Os grilhões se rompem no domingo, 28 de outubro. Então ligarei a ti. E não te culparei por algo que possas me dizer.
Corey
Ela conhecera um homem com quem simpatizara no início de outubro. Era atraente e parecia ter dinheiro. Saiu com ela três noites numa semana e tentou a seduzir no fim de semana seguinte, embora sem muito empenho. Quando Inger começou a chorar, ele a levou a confessar que estava apaixonada por outro homem. Ela tentara pensar em Corey como morto, desaparecido, alguém que fora embora a sempre. Mas sabia que nenhuma dessas coisas era verdade. Ele ainda estava perto e 28 de outubro, o dia da libertação, estava próximo. Inger disse ao homem que não o veria mais.
Na sexta-feira anterior ao dia 28 uma amiga chamada Sílvia foi à casa de Inger, a fim de lá passar o fim de semana. Seu apartamento estava sendo pintado e ela era alérgica ao cheiro de tinta. Ela passou a maior parte do tempo falando sobre um homem chamado Leonardo, que era casado, pedindo conselho a Inger, em voz queixosa, e ficando emburrada sempre que ouvia a opinião de que devia o largar.
Na noite de sábado, estimulada pelo álcool, Inger perdeu o retraimento normal e falou a Sílvia sobre Corey Jensen. A amiga ficou escutando, fascinada, seus próprios problemas românticos momentaneamente esquecidos. Concordou efusivamente com a conclusão de Inger:
— Terrível! Pavoroso! Podes estar certa de que ficas muito melhor sem ele!
Quanto mais falava a respeito de Corey, no entanto, quanto mais Sílvia concordava, mais Inger compreendia o quanto sentia saudade dele.
— Achas que telefonará? — Indagou Sílvia, de olhos arregalados. — Achas que terá essa coragem?
— Não sei.
Sílvia ainda estava dormindo, na manhã de domingo, quando Inger acordou e começou a olhar o telefone. Ainda não tocara às 2h, quando Sílvia foi embora, ansiosa em não perder um encontro vespertino com Leonardo.
Às 3h, Inger chegou à conclusão de que seu orgulho não valia o suspense. Ligou ao apartamento de Corey. O telefone estava ocupado e ela desligou apressadamente, na esperança de que fosse Corey tentando lhe falar. Nada aconteceu. Quinze minutos depois já discara o número tantas vezes que o dedo estava doendo. Se forçou a esperar meia hora antes de tornar a discar. O telefone, tocou muitas vezes mas ninguém atendeu. Inger se censurou por tomar uma decisão errada.
Vestiu uma capa pouco depois das 4h e saiu. Pegou um táxi pra ir ao apartamento de Corey, tentando não pensar no certo ou errado, em orgulho ou vergonha.
Inger esperava ter de enfrentar a necessidade de acampar na porta dele mas teve sorte. Corey abriu a porta, carregando o telefone como se fosse uma valise.
— Espero que seja a mim que estás ligando. — Disse ela, jovialmente. — Ou já esqueceste que prometeras telefonar?
Ele retorceu o fio do telefone entre os dedos.
— Juro que eu ligaria a ti, Inger. Só que aconteceu um problema. Me dês só um minuto.
— Está certo. Eu não estava mesmo esperando que te jogasses a meus pés. Mas ainda estou com teu anel e precisava descobrir se deseja que o conserve.
— Claro que é justamente isso o que estou querendo! As palavras deveriam ter sido acompanhadas por um abraço, mas Corey ainda estava ocupado com o telefone.
— Te sentes, meu bem. Esperes só um minuto, enquanto dou este telefonema.
Ele pôs o telefone na mesa e discou.
Alô? Aqui é Corey Jensen de novo. Já sei. Já sei. Mas pensei que poderias ter sabido algo desde... — A voz se alterou, furiosa. — Mas trabalhas pra ele! Está bem. Está bem... Basta dar meu recado.
Desligou, batendo o fone com toda força.
— O que foi?, Corey. Pareces não estar muito bem.
— Inger, faças o favor de esperar.
Estava discando outra vez, o rosto molhado de suor. Precisava fazer a barba, os fios brilhavam com a umidade.
— Marta? Sou eu, Corey. Sei que é muito difícil, mas viste Ray?... Não, não estou querendo insinuar algo. Queria apenas saber se o viste. Sabes se Ronnie está em casa? Não, não precisas te incomodar. Se não sabes onde Ray está, com certeza não vai aparecerá aí. Não posso falar agora. Já estou atrasado. Adeus, Marta.
Ele desligou. Antes que pudesse discar de novo, Inger interveio:
— Já chega!, Corey. Se não podes dispor dum minuto pra mim entre telefonemas, então é melhor eu ir embora!
Ele reagiu suavemente à ameaça:
— Não entendes, meu bem. Estou tentando o encontrar. Não está no apartamento e a criada não sabe onde.
— Quem?
— Ray Chaffee. Sumiu! — Corey esfregou as mãos na calça, nervosamente. — Acho que o desgraçado está tentando fugir!
— Por causa da aposta? Por que venceste?
O telefone tocou e ele saltou pra atender.
— Isso mesmo, sou senhor Jensen. É verdade, pedi a ligação. Alô? Senhor Valdez!... Isso mesmo. É urgente localizar senhor Chaffee. Acho que está embarcando num avião da Panagra hoje mas não sei qual é o vôo... É, sim, uma questão de vida ou morte... Uma pessoa de sua família está muito doente... Sei que é contra o regulamento, mas... Como?
Ele fez uma pausa, os olhos faiscando.
— Já entendi. Vôo 33, decolando às 6:30h... Não, um recado não adiantará. Poderá pensar que é um engano... Posso chegar ao aeroporto a tempo... Muito obrigado, senhor Valdez.
Desligou, exalando fúria e triunfo.
— É mesmo verdade! Está tentando trapacear indo à América do Sul!
— Não estou entendendo, Corey.
— A viagem em junho. Estava arrumando um emprego lá, preparando a fuga.
— Mas por quê? Ele perdeu tanto dinheiro assim?
— Tenho de sair agora, Inger. Preciso chegar ao aeroporto a tempo.
Se encaminhava ao armário mas Inger se postou na frente.
— Dinheiro? — Gritou Corey. — Achas mesmo que apostamos dinheiro?
— Mas apostastes!
— Só que nunca falei em dinheiro. Essa foi tua conclusão. E também não foi propriamente uma aposta. Foi uma troca, um acordo, uma barganha. Entendes agora?
— Corey!
— Agora pensa realmente que estou doente. Não é? Pois podes pensar o que bem quiseres. Mas uma coisa posso garantir, Inger: Não conseguirá escapar. Teve seu ano e agora terei o meu!
— Um ano? Está querendo dizer que é teu escravo agora, durante um ano?
— Isso mesmo, meu bem. senhor Chaffee pagará sua dívida. Me obrigou a pagar e agora é sua vez. Estou com o chicote na mão e terá de pular quando eu mandar, mesmo que eu tenha de o arrancar a força daquele avião!
Fez menção de seguir à porta e Inger o segurou no braço.
— Pelo-amor-de-deus!, Corey. Não faças isso! O deixes ir embora. Não podes fazer consigo o que fez contigo. Seria horrível demais. Não é humano!
— Pares com isso!, Inger. É uma longa viagem até o aeroporto e preciso...
— Corey, eu não poderia suportar outro ano assim!
— Mas será que não entendes que desta vez não será a mesma coisa? Desta vez é o escravo e eu o amo...
Isso não faz diferença! Não há diferença entre as duas coisas! Eu não poderia me casar contigo nessa circunstância. Não poderia suportar! Não me casarei contigo!, Corey.
Durante um momento a respiração dele se aquietou, os olhos perderam um pouco do brilho febril. Então disse:
— Sinto muito, Inger, mas não posso evitar. Nada posso fazer agora. Já é tarde demais.
Saiu rapidamente, fechando a porta. Inger se adiantou e tornou à abrir, gritando enquanto ele se afastava no corredor, a caminho do elevador, uma voz tão estridente como ela nunca imaginara que possuísse:
— Vás logo! Podes ir! Vás procurar teu precioso escravo! Espero que sede mui felizes um com o outro!
Inger fechou a porta, sentindo que devia chorar, mas incapaz de produzir lágrima. E pensou:
— Aposto que serão mesmo muito felizes. Tenho certeza de que serão.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A AMOREIRA -CONTO DOS IRMÃOS GRIMM


Há muito tempo havia um homem rico casado com uma mulher muito
bonita e religiosa; eles se amavam muito mas não tinham filhos, e por mais que desejassem tê-los, não apareciam. À frente da casa havia uma amoreira. Em certo inverno a mulher estava debaixo da amoreira descascando uma maçã e cortou o dedo; o sangue escorreu e caiu na neve. “Ah”, disse a mulher com profundo suspiro, olhando tristonha para aquele sangue, “se eu tivesse um menino vermelho como o sangue e branco como a neve!” Mal acabara de falar sentiu-se serena como se tivesse um pressentimento. Voltou para casa.
Passou uma lua e a neve desapareceu; após duas luas a terra reverdeceu;
após três luas desabrocharam as flores; após quatro luas todas as árvores do bosque se revestiram de galhos viçosos; os pássaros cantavam ressoando por todo o bosque e as flores caíam das árvores; passara a quinta lua o perfume da amoreira era tão suave que a mulher sentiu o coração palpitar de felicidade ecaiu de joelhos, fora de si de alegria; depois da sexta lua as frutas iam se tornando mais grossas e ela se acalmou; na sétima lua colheu algumas amoras e comeu-as avidamente, mas se tornou triste e adoeceu; passou a oitava lua e ela
chamou o marido e lhe disse chorando: “Se eu morrer, enterra-me debaixo da amoreira.” Depois voltou a ficar tranqüila e alegre até que uma outra lua, a nona, passou; então nasceu-lhe um menino, alvo como a neve e vermelho como o sangue e, quando o viu, sua alegria foi tanta que morreu.
O marido a enterrou sob a amoreira e chorou muito durante um ano; no
ano seguinte chorou menos e, finalmente, parou de chorar e se casou novamente.
Da segunda mulher teve uma filha. Quando a mulher olhava a filha sentia que a amava com imensa ternura; mas quando olhava o menino sentia algo a lhe aguilhoar o coração e achava que era um estorvo para todos. Pensava continuamente o que deveria fazer para que a herança passasse toda à filha. O demônio lhe inspirava os piores sentimentos; passou a odiar o rapazinho, a enxotá-lo de um canto para o outro, a esmurrá-lo e empurrá-lo, de maneira que o pobre menino vivia completamente aterrorizado e não encontrava um minuto
de paz.
Certo dia a mulher se dirigiu à despensa e a filhinha a seguiu. “Mamãe”,
pediu, “dá-me uma maçã.” “Sim, minha filhinha”, disse a mulher tirando uma bela maçã de dentro do caixão, o qual tinha uma tampa muito grossa e pesada além de uma grossa e cortante fechadura de ferro. “Mamãe”, disse a menina, “não dás uma também a meu irmão?” A mulher se irritou, mas respondeu:
“Dou sim, quando ele voltar da escola”. Quando da janela o viu chegando foi como se estivesse possessa; tirou a maçã da mão da filha dizendo: “Não deves ganhá-la antes de teu irmão.” Jogou a maçã dentro do caixão e o fechou.
Quando o menino entrou ela lhe disse, com fingida doçura: “Meu filho, queres uma maçã?” e lançou-lhe um olhar arrevezado. “Oh, mamãe” disse o menino “que cara assustadora tens! Sim, dá-me a maçã.” “Vem comigo” disse ela animando-o, e levantou a tampa “tira tu mesmo a maçã.” Quando o menino se debruçou para pegar a maçã, o demônio tentou-a e paff! ela deixou cair a tampa cortando-lhe a cabeça, que rolou sobre as maçãs. Então se sentiu tomada de pavor e pensou: “Ah, como poderei me livrar dele?!” Subiu então ao seu quarto, tirou da primeira gaveta da cômoda um lenço branco, ajeitou a cabeça nodevido lugar atando-lhe em seguida o lenço, depois o sentou numa cadeiraperto da porta, com a maçã na mão.
Pouco depois Marleninha foi à cozinha, onde a mãe estava mexendo num
caldeirão cheio de água quente. “Mamãe, meu irmão está sentado perto da porta ... todo branco, e tem uma maçã na mão; pedi-lhe que ma desse, mas ele não respondeu e eu me assustei.” “Volta lá” disse a mãe “e se não quiser te responder dá-lhe uma bofetada.” Marleninha voltou e disse: “Meu irmão, dá- me um pedaço de maçã!” Como ele continuou calado deu-lhe uma bofetada e a cabeça lhe caiu. Ela começou a chorar e correu para a mãe, dizendo: “Ah, mamãe, arranquei a cabeça de meu irmão!” E chorava sem parar. “Marleninha, que fizeste!” disse a mãe. “Acalma-te, não chores, para que ninguém o perceba; não há mais remédio! Vamos cozinhá-lo em molho escabeche.”
A mãe pegou o menino, cortou-o em pedaços, pôs numa panela e
cozinhou com vinagre. Marleninha, porém, chorava sem parar e suas lágrimas caíam todas dentro da panela. Assim não precisaram salgá-lo.
O pai chegou em casa, sentou-se à mesa e perguntou: “Onde está meu
filho?” Então a mãe trouxe-lhe uma travessa cheia de carne em escabeche.
Marleninha chorava sem se conter. O pai repetiu: “Onde está meu filho?” “Ele foi para o campo, para a casa de um parente onde deseja passar algum tempo”
respondeu a mãe. “E que vai fazer lá? Saiu sem ao menos se despedir de mim!”
“Ora, tinha vontade de ir e me pediu para ficar lá algumas semanas. Será bem tratado, verás!” “Ah, isso me aborrece!” retorquiu o homem, “não está direito,devia ao menos se despedir de mim.” Assim dizendo começou a comer.
“Marleninha, por que choras?” perguntou ele. “Teu irmão voltará logo. Oh mulher, como está gostosa esta comida! Dá-me mais um pouco.” Mais comia mais queria comer, e dizia: “Dá-me mais, não sobrará nada para vocês; parece que é só para mim.” E comia, comia, jogando os ossinhos debaixo da mesa. Marleninha foi buscar seu lenço de seda mais bonito, na última gaveta da cômoda, recolheu todos os ossos e ossinhos que estavam debaixo da mesa, amarrou-os bem no lenço e levou-os para fora, chorando lágrimas de sangue.
Enterrou-os entre a relva verde, sob a amoreira, e tendo feito isso se sentiu logo aliviada e não chorou mais. A amoreira começou então a se mover, os ramos se apartavam e se reuniam de novo, como quando alguém bate palmas de alegria.
Da árvore se desprendeu uma nuvem e dentro da nuvem parecia ter um fogo ardendo; do fogo saiu voando um lindo passarinho, que cantava maravilhosamente e alçou vôo rumo ao espaço; quando desapareceu a amoreira voltou ao estado de antes e o lenço com os ossos havia desaparecido.
Marleninha se sentiu aliviada e feliz, como se o irmão ainda estivesse vivo.
Voltou para casa muito contente, sentou-se à mesa e comeu.
O pássaro voou para longe, foi pousar sobre a casa de um ourives e se pôs
a cantar:

Minha mãe me matou,
meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

O ourives estava na oficina confeccionando uma corrente de ouro; ouviu o pássaro cantando sobre o telhado e achou o canto maravilhoso. Levantou-se para ver e ao sair perdeu um chinelo e uma meia, mas foi ao meio meio da rua mesmo com um chinelo e uma meia só. Estava com o avental de couro, numadas mãos tinha a corrente de ouro e na outra a pinça; o sol estavaresplandecente e iluminava toda a rua. Ele se deteve, e olhando para o pássaro disse: “Pássaro, como cantas bem! Canta-me outra vez a tua canção.” “Não,” disse o pássaro, “não canto de graça duas vezes; dá-me a corrente de ouro queeu a cantarei outra vez.” “Aqui está a corrente, agora canta outra vez!” disse o ourives. O pássaro então voou e foi buscar a corrente de ouro, apanhou-a com a patinha direita, sentou-se diante do ourives e cantou:

Minha mãe me matou,
meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!


Depois o pássaro voou para a casa de um sapateiro; pousou sobre o
telhado e cantou:
Minha mãe me matou,
meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

O sapateiro o ouviu e correu à porta em mangas de camisa; olhou para o
telhado resguardando os olhos com a mão para que o sol não o cegasse.
“Pássaro, como cantas bem!” E da porta chamou: “mulher, vem cá, está aqui um pássaro que canta divinamente! Vem ver.” Depois chamou a filha, os filhos, os ajudantes, o criado e a criada, e todos foram para a rua ver o passarinho, que era realmente lindo com as penas vermelhas e verdes, em volta do pescoço parecia de ouro puro e os olhinhos eram cintilantes como estrelas. “Pássaro, canta outra vez a tua canção!” pediu o sapateiro. “Não, “respondeu o pássaro,“não canto de graça duas vezes, tens que me dar alguma coisa.” “Mulher, atrásda banca, na parte mais alta, tem um lindo par de sapatos vermelhos, traz aqui”
disse o sapateiro. A mulher foi buscar os sapatos. “Aqui tens, pássaro; agora canta novamente a tua canção.” O pássaro foi buscar os sapatos com a pataesquerda, depois voou para o telhado e cantou:

Minha mãe me matou,
meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

Terminado o canto foi-se embora, levando a corrente na pata direita e os
sapatos na esquerda, e voou para longe, longe, sobre um moinho, e o moinho girava fazendo clipe clape, clipe clape, clipe clape. E na porta do moinho estavam sentados os ajudantes do moleiro, que batiam com o martelo na mó: tique taque, tique taque, tique taque; e o moinho girava: clipe clape, clipe clape,clipe clape. Então o pássaro pousou numa tília em frente ao moinho e cantou:

Minha mãe me matou,
E um ajudante parou de trabalhar.
meu pai me comeu,
Outros dois ajudantes pararam de trabalhar para ouvir.
minha irmã Marleninha
Outros quatro pararam de trabalhar.
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
Oito ainda continuavam batendo.
debaixo da amoreira
Mais outros cinco pararam.
os ocultou,
Ainda mais um, mais outro.
piu, piu, que lindo pássaro sou!

Então o último ajudante também largou o trabalho e pôde ouvir o fim do
canto. “Pássaro, como cantas bem! Deixa-me ouvir-te também, canta outra vez.”“Não” disse o pássaro, “não canto de graça duas vezes; dá-me essa mó e cantarei de novo.” “Sim, se fosse só minha eu ta daria.” “Sim” disseram osoutros, “se cantar novamente a terá.” Então o pássaro desceu e os moleiros todos, pegando uma alavanca, suspenderam a mó, dizendo: oop, oop, oop, oop! O pássaro enfiou a cabeça no buraco da mó como se fosse uma coleira; depois voltou para a árvore e cantou:

Minha mãe me matou,
meu pai me comeu,
minha irmã Marleninha
meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

Acabando de cantar abriu as asas, levando na pata direita a corrente de
ouro, na esquerda o par de sapatos e no pescoço a mó, e foi-se embora voando
para a casa do pai.
Na sala estavam o pai, a mãe e Marleninha sentados à mesa; o pai disse:
“Ah, que alegria; estou me sentindo tão feliz!” “Oh não” disse a mãe, “eu estou com medo, assim como quando se anuncia forte tempestade.” Marleninha, sentada em seu lugar, chorava, chorava. Então chegou o pássaro, e quando pousou em cima do telhado o pai disse: “Ah, que alegria! Como o sol brilha lá fora! É como se tornasse a ver um velho amigo!” “Ah não” disse a mulher, “eusinto tanto medo, estou batendo os dentes e parece-me ter fogo nas veias.”
Assim dizendo tirou o corpete. Marleninha continuava sentada em seu lugar e chorava, segurando o avental diante dos olhos e banhando-o de lágrimas. Então o pássaro pousou sobre a amoreira e cantou:

Minha mãe me matou,

e a mãe tapou os ouvidos e fechou os olhos para não ver e não ouvir, mas
zumbiam-lhe os ouvidos como se fosse o fragor da tempestade e os olhos lhe ardiam como se fossem tocados pelo raio.

meu pai me comeu,

“Ah mãe” disse o homem, “há aí um pássaro que canta tão bem! E o sol
está tão brilhante! E o ar recende a cinamomo.”

minha irmã Marleninha

Então Marleninha inclinou a cabeça nos joelhos e prorrompeu num choro violento, mas o homem disse: “Vou lá fora, quero ver esse pássaro de perto.”
“Não vás, não!” disse a mulher, “parece-me que a casa toda está estremecendo eardendo.” O homem porém saiu.

meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,
debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

Com isso o pássaro deixou cair a corrente de ouro exatamente em volta do pescoço de seu pai, servindo-lhe esta tão bem como se fora feita especialmente para ele. O homem entrou em casa e disse: “Se visses que lindo pássaro! Deu-me esta bela corrente de ouro, e é tão bonito!” Mas a mulher, transida de medo, caiu estendida no chão, deixando cair a touca da cabeça. E o pássaro cantounovamente:


Minha mãe me matou,

“Ah, se eu pudesse estar mil léguas debaixo da terra para não ouvi-lo!”

meu pai me comeu,

A mulher se debateu, e parecia morta.

minha irmã Marleninha

“Oh” disse Marleninha, “eu também quero ir lá fora; quem sabe se o
pássaro dá algum presente também a mim!” E saiu.


meus ossos juntou,
num lenço de seda os amarrou,

e atirou-lhe os sapatos.

debaixo da amoreira os ocultou,
piu, piu, que lindo pássaro sou!

Marleninha então se sentiu alegre e feliz. Calçou os sapatos vermelhos;
pulando e dançando, entrou em casa. “Estava tão triste quando saí e agoraestou tão alegre! Que pássaro maravilhoso! Deu-me um par de sapatosvermelhos.” “Oh não” disse a mulher; ergueu-se de um salto e os cabelos se lhe eriçaram como labaredas de fogo. “Parece-me que vai cair o mundo, vou sair também, quem sabe não me sentirei melhor?”


Quando transpôs a soleira da porta pac! o pássaro lhe atirou na cabeça a
pesada mó, que a esmigalhou. O pai e Marleninha, ouvindo isso, correram e viram se desprender do solo fogo e fumaça, e quando tudo desapareceu eis que surge o irmãozinho, estendendo as mãos para o pai e Marleninha; e muito felizes entraram os três em casa, sentaram-se à mesa e começaram a comer.

DOMINGO EM MADUREIRA-CHICO ANISIO-EXTRAÍDO DO LIVRO O ENTERRO DO ANÃO


Depois do primeiro cantaram todos os galos da rua.
Era domingo,
no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar
tão cedo assim.
— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a
cantar.
Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era do-
mingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha
tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser do-
mingo.
Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som
grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chiado, botando
fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabe-
los. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina
— falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era
domingo.
— Dorme, Climério, ainda é cedo.
— Cinco horas.
— É domingo.
Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua
cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em pre-
servar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.
A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.
A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um do-
mingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou
o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra
cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.
Esqueceu de dar descarga.
Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na
cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.
O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se
acordar, iria à missa das seis.
Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no
quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.
Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças
caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma
roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater
ponto na repartição.
Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e
Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável pa-
ra o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.
De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos.
Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga
enorme.
— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e
um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.
Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combinação
pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça
nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra
c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.
Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os
pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava
resto de sono dos olhos.
De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e
Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.
— Que horas são?
— São cinco e meia.
As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis.
Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à
praia. A de Ramos, como sempre.
Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser
jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto
do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre
fosse tão curto e um só por semana.
Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de on-
tem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou depois, ten-
tando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia co-
çar. Acompanhava a coceira com um bocejo prolongado. Pediu socorro
ao marido.
— Coça aqui.
Ele coçou. Custou a achar o lugar.
— Todo mundo já acordou?
— As meninas. Júlio, não.
— Você já viu o leitão?
— perguntou, sem interesse, enquanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota.
— O leitão cabe no forno?
— Hum, hum — ela fez que sim.
Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às
seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. Entraram as
três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia
fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha
acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam
somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje antecipara uma hora esse costume, por ter
levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos do-
mingos.
Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois,
apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.
Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A
tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho...
a velha calha do alpendre... uma torneira enjambrada ... Havia
sempre umas coisas a arrumar no domingo.
O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adi-
das".
— Vai jogar?
— Bater uma bola.
Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.
Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pe-
gou o ônibus, Climério entrou no bar.
— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém-acordado, olho inchado, cara marcada de travesseiro.
— Duas?
— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu
Severo?
Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.
Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na
hipótese mais mansa.
Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O relógio
consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.
Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es-
peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.
Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jor-
nal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.
— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa
lembrando o que ele já sabia.
O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café
com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.
— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo
no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concor-
dasse ou desse contra.
Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os
dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra
logo mais.
O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a
cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — coma-
dre Emerenciana
— muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.
— Quem é vivo sempre chega!
— Climério estreitou o compadre num abraço comovido.
— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou
risada.
Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.
— E o reumatismo, comadre?
— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem
sei o que faça.
— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.
A chegada dos compadres endomingou mais a casa.
— Como é? Tem um leitão?
— era Juca quem falava.
— É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.
— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com aflição, enquan-
to Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.
— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, enquanto se
dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.
— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.
Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Emerenciana
usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.
Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetrechos de conserto. Juca ia dar uma mão nos consertos a fazer.
— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.
— Manda brasa!
A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe es-
tendeu. Comentou:
— Tá de lascar! Vira aqui.
E ele bebeu a oitava de um só gole.
O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com baca-
lhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.
Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama
no corpo.
— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.
Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que traba-
lhavam o possível na cerca e na batidinha.
— Tá demais, essa batida.
As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e
voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compa-
dres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.
As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de
uma das três, chegaram quinze pras duas.
— Boa tarde, Seu Climério
— Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.
Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo
preciso.
— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.
Climério providenciou, cortando um velho sapato.
— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já sa-
indo difícil, pastosa, meio embrulhada.
— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo
desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.
Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida,
cortavam as frutas a usar na salada costumeira.
A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava
Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro,
fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova,
Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.
Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso
trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.
Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.
A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca
deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que
Climério lhe estendia.
— Nessa aqui eu caprichei.
Provou.
— Está uma brasa!
Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais do-
brada, dando jeito no topete — cabeleira demodée que insistia em
usar. Mostrou que ia sair.
— Não vai almoçar, Julinho?
— Não dá, mãe, tou com pressa. Como um troço por aí.
Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria
enfrentar o Madureira.
Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!
O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil
devorados em goles longos e frios.
Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era domingo,
dia bom pra sorrir.
Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.
— Vira, vira, vira.. .
— Vira, vira, vira. . .
Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.
Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demarcado por
tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.
Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava
atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta
que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.
Saíram Rui e as moças para um cinema provável.
O arroto de Climério avisou que ele acabara.
— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.
As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Conversavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pontos de tricô.
— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso
maroto.
Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não
prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...
— Dormindo!
— Deixa.
Afinal, era domingo.

PANTALEÃO E A ESTÓRIA DA LAGOA VIAJANTE-CHICO ANISIO


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NÃo ERA A PRIMEIRA VEZ que o Dr. Delegado dava o prazer de sua presença. Sempre
que podia, ele vinha à casa de Pantaleão, ávido por ouvir uma estória sucedida e vencida por aquele homem bom contador. Mas a noite não estava boa para Pantaleão Pereira Peixoto. O cobreiro que lhe apareceu na sola do pé era o responsável pela desvontade que sentia. Já fizera toda sorte de meizinhas, o pé fora rezado por Candinha Rezadeira, responsável por muitas curas mais difíceis, mas nada resolvera. E isto lhe dava leseira, uma moleza bastarda, uma pontinha de febre. — Quer que eu mande o doutor aqui, Seu Pantaleão? — sugeriu o delegado na pergunta prestativa. — Quero não, Doutor Delegado. Se é pra morrer, que eu morra de morte morrida. O doutor vindo, vai é me matar mais depressa. Dona Terta trouxe a compressa e lhe envolveu o pé num farrapo de morim. — Quando Seu Pantaleão melhorar — era Pedro Bó quem falava — vai contar a estória da lagoa viajante. Pra que Pedro Bó foi lembrar? Os olhos do velho encheram-se de lágrimas. Emoção visível fluindo nele. O delegado notou. E sabia da fraqueza dele pelo gosto que tinha em contar um caso. — Lagoa viajante não existe — falou, provocante, propositalmente provocante. — O senhor pode nunca ter visto, mas que existe, existe que seu amigo aqui já viu. — Conte meu velho... Não era preciso pedir outra vez. O pé subiu para o assento da cadeira, os dedos da mão corriam entre os dedos do pé, o rosto já tomava outro aspecto. — O doutor Delegado já ouviu falar na Lagoa dos Bragas? — Em Pernambuco?
— Essa, doutor. A Lagoa dos Bragas, em Pernambuco. Conhece, não conhece? Pois bom... A lagoa era grande que mais parecia uma fatia farta de mar. Grávida de peixes onde, dizem, havia traíras de cujas espinhas podia-se fazer dúzias de cabides. Era uma tarde de inverno. Frio não fazia, mas descia da serra um ventinho mais fresco do que o costumeiro e que obrigava o povo a levantar a gola da camisa, na proteção do que chamavam de frio. Mas não era frio, repito. Era apenas um calor menor, um frescor de fim de tarde. Já tinham falado de um peixe grande, na Lagoa dos Bragas. Muitos haviam dito ter visto o peixe "com esses olhos que a terra há de comer", e garantiam que o peixe não viria em anzol nenhum, nem em tarrafa pequena. Cada um afirmava um tamanho diferente do peixe, mas nenhum deles calculava em menos de trinta metros. Pantaleão não era dos que acreditam em qualquer conversa. Sabia que peixe de trinta metros não podia existir na Lagoa dos Bragas, mas admitia que uns vinte o peixe medisse. Por isso levou muita isca. Catorze vacas, foi o que levou. Pegou a primeira e a prendeu no anzol, atirando-a ao rio ainda viva. Tinha que ser assim. Viva, a vaca mexia- se dentro da água chamando a atenção do tal peixe de trinta metros — que deviam ser, quando muito, uns dezoito. — Esse peixe eu pego, que eu não vou perder minha viagem de casa até a Lagoa Paciência. ..
— Mas não era Lagoa dos Bragas, Seu Pantaleão? — estranhou o delegado, bebendo o café adocicado pela rapadura raspada. — A lagoa era dos Bragas, porque ficava na terra dos Bragas, mas o nome dela era Lagoa Paciência. Grande e perigosa, doutor, que nela morreram mais de quinze...
— Quinze pessoas?
— Não, Pedro Bó; quinze hipopoto. Oh, homem pra perguntar besteira. Sabe de uma coisa? Não conto mais nada, não. E já calçou a chinela para ir embora.
— Conte, meu velho. Voltou a sentar. — Você botou a vaca no anzol e sacudiu na lagoa. Siga daí.
— Pois bom...
Daí, a espera pelo peixe maldito que um dia seria fisgado. E se havia alguém que pudesse com ele, este alguém estava ali. Era Pantaleão Pereira Peixoto, segurando o caniço com força, o olho único parado na água barrenta. E o peixe chegou. Pantaleão sentiu a fisgada e firmou ainda mais o caniço que se vergava na luta que começava. Não havia quem o ajudasse. Ele dava um arranque com a vara, e o peixe botava a cabeça fora da água. Não devia medir os trinta metros que falavam, mas talvez uns quarenta, porque pela boca dava para que se calculasse. O caniço mostrava que em breve se quebraria. Era preciso uma providência. Pantaleão lembrou das outras vacas que levara. Uma já havia sido comida pelo peixe, mas restavam treze pastando ali junto. Ao sentir que o peixe o arrastaria, pegou as treze vacas e nelas amarrou a linha.
— Linha de anzol?
— Não, Pedro Bó. Linha do Ferroviário. Peguei o ponta-direita, os meia, o ponta-
esquerda e o centrefor e amarrei nas vaca. Pergunta mais uma besteira pra ver se eu não lhe dou um bofete.
— Não se incomode com Pedro Bó — disse o delegado. — Continue. Amarrou
as treze vacas e aí?
— As vacas fazendo força, doutor, e nada de arrastar o peixe. Já o sol se amornava, eu pensei comigo: "anoitece e não tiro esse bicho da água". Mas eu não sou homem de desistir de empreitada. Comecei a puxar também, junto com as vacas. Cadê que o peixe saía? Diabo de peixe. Vai ver essa peste só sai com a polícia. Cheguei a pensar em chamar o senhor pra dar voz de prisão àquele peixe maldito. Foi quando eu dei fé que pela estrada iam passando doze homens que trabalhavam nas terras do coronel Firmino. Gritei, os cabras vieram, eu contei o que se passava, eles foram buscar cinco carros de boi pra me ajudar na tarefa Engatei os carros de boi junto com as vacas e ainda mais os doze homens de coronel Firmino e ainda mais eu, tudo puxando. — Puxando o peixe? — Não, Pedro Bó. Puxando tua mãe, pois não era tua mãe quem estava na Lagoa dos Bragas? Pedro Bó. .. tenha paciência. Se eu contar o resto eu estrale. Pedidos, súplicas, solicitações chorosas de Dona Terta. — Pois bom! As juntas de bois e a força das vacas, aliadas ao esforço dos homens, começaram a tarefa. Não era serviço fácil, porque a força do peixe era imensamente maior do que a imaginável. Rangiam as rodas dos carros de boi, as vacas mugiam mugidos sofridos, os homens gemiam com os músculos tensos, à flor da pele, querendo estourar. Pantaleão ordenava a hora de mais força com os "ôôpp" e os "êêêppp" que gritava a cada momento. O peixe continuava sua luta. Não poderia ser um peixezinho qualquer de cinqüenta ou sessenta metros, mas alguma coisa maior. — Será que esse peixe não é um navio? — admitiu um dos homens que ajudavam. — Não conversa. Faz força, diacho. Ôôôppp. Mas a força era vencida pela força do peixe que até parecia trazê-los para a lagoa, em vez de dela sair. Lutaram por um tempo que pareceu infinito. Até que perceberam ser inútil continuar. O peixe não saía da lagoa. Quer dizer, então, que não arrastaram o peixe? — perguntou o delegado, sem esconder que lamentava a derrota. — O peixe, não, mas arrastamos a lagoa até a cidade. — O quê? — o delegado pôs-se de pé diante do que julgou uma mentira. — Arrastaram uma lagoa até a cidade? — Esse causo findou-se em Belo Horizonte. Va lá e veja se não tem uma lagoa no meio da cidade.