sexta-feira, 13 de agosto de 2010

VICÍO DE MATAR-CONTO POLICIAL DE RICHARD KADROV


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Aproximo-me da mulher, mas o acompanhante me vê e faz menção de pegar alguma coisa sob o casaco. Reflexos não humanos; mas costumo devorar não humanos no almoço. As batidas
do coração da mulher sussurram, me fazem confidências. A boca do homem se movimenta, expressando dor em alguma linguagem animal. O estalar dos ossos lembra uma placa de gelo que se quebra, um som distante e solitário. Deixo-o contorcendo-se, com a Magnum ainda na mão. Então, eu e a mulher somos um, dançando num tapete de cacos de vidro no beco atrás do clube, enlaçados em uma valsa em câmera lenta, meus dentes em sua garganta, seu sangue em meu estômago. Jóias, penso. Mel. Suor. Amor. Meu coração bate mais devagar quando a coisa na minha cabeça percebe que a vida dela está se extinguindo. No momento em que isso ocorre, emite um som baixo e resignado, como se há muito tempo esperasse por mim ou por alguém como eu. Encara a morte como uma libertação e está certa. Sua morte trouxe alívio para minha sede e a coisa dentro de minha cabeça ronrona como um gato gordo e satisfeito. Abandono o corpo em um depósito já atulhado de lixo. Depois, ardendo com a vida dela, pulo um muro e começo a escalada; deslizo e rodopio pelos telhados, saltitando e batendo os calcanhares. Talvez você já me tenha visto entre as antenas de televisão, o Baryshnikov do matadouro.
Tenho visto você freqüentemente no ônibus, no bonde, ou andando de jinriquixá às quatro da manhã. Geralmente, você não me vê. Sou igual a qualquer um. Suo sangue e mercúrio e me disfarço com roupas extravagantes, típicas desses esquizofrênicos que vivem pichando as paredes do metrô. Cada mensagem rabiscada é uma súplica e uma advertência. Está escutando? Eu estou. Às vezes, percebe minha presença, trocamos olhares de reconhecimento; comunicamo-nos naquela estranha linguagem muda das primeiras horas da manhã, no pesado silêncio de um cenário de tampas de bueiro fumarentas e portarias desertas de gigantescos edifícios de escritórios. Ambos detestamos as palavras, é óbvio. Ainda assim, não posso deixar de me perguntar quem você teria traído ou o que teria feito para me mandarem no seu encalço.

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À noite, sinto seu calor. Conheço sua pulsação, porque 81 é a minha também. Deram-me uma pulsação igual á sua e me disseram para encontrá-la, caçá-la pelo ritmo e essência de sua vida. Se não lograr matá-la, parar seu coração, morrerei em seu lugar. Meu corpo não resistirá. Não posso viver muito tempo com a pulsação alheia.
Nem ao menos me disseram seu nome.
Há uma coisa na minha cabeça. Brilhante como um cromado, lisa como o jade polido, no formato de uma bala. Ouço seu zumbido dentro de meu cérebro, como um casulo ansioso por libertar o conteúdo. Altera-me. Dilui meu sangue, embaralha meus pensamentos, endurece meus olhos transformando-os em negras adagas gélidas e brilhantes. Quando decidem me ligar, sou capaz de ver até a medula dos seus ossos, farejar a vida em você. Variegate Erythropoietic Porphyria. Sim, o vampiro mecânico, sou eu mesmo. Os Homens de Terno me dão o tratamento Lugosi quando bem entendem, me ordenam que mate e depois me desligam através da bala na minha cabeça.
─ Hemofluxo ─ sentenciam em sotaques de Harvard, Bangkok
e Texas.
Acredite em mim quanto a este aspecto: quando me ligam, é melhor do que qualquer droga. Melhor que bolinhas, sexo ou música. Por isso sou inteiramente dominado por eles. Os Homens de Terno se tornaram minha mãe coletiva. Sou amamentado pela coisa em minha cabeça.
Criaram treze de nós ao todo. Sete mulheres e seis homens.
Um número primo; o número de uma sociedade macabra. Grande sujeitos, aqueles rapazes do governo. Trouxeram-nos de volta para os Estados Unidos e colocaram-nos balas vampirizantes
na cabeça. Deram-nos olhos que se turvam quando apertam um botão. Suponho que é por isso que estou aqui voando nesta lata de luxo, a uma velocidade mach três, sobre o Atlântico Sul, contando esta história a vocês.
Há alguns anos atrás, eu vivia na água. Mais precisamente,
em abóbadas de gelo antártico, brancas e límpidas, quilômetro
e meio abaixo da chuva ácida, dos vazamentos de radiação
e dos peixes cancerosos. O fim do mundo, tão fundo que as paredes ainda continham H2O fresca, fossilizada em forma degelo. Éramos trabalhadores voluntários, treze presidiários entre centenas, egressos de San Quentin. Estavam pagando preços de ópio por aquela água, preservada dos resíduos industriais e da agonizante camada de ozônio por um milhão de anos. Entretanto, profissionais da hidromineração teriam abocanhado uma parcela muito grande da margem de lucro do cartel que financiava a escavação. Foi por isso que nos recrutaram. Um negócio supimpa para todos os envolvidos. Obtinham a água a preços mais baixos, e nós, uma semana deduzida de nossas penas por dia de trabalho.
Estamparam nossos números de presidiários nas costas dos uniformes termo isolantes. As fibras de micro vidro recendiam
a mofo, urina e suor velho. Selados dentro daqueles trajes volumosos, não tínhamos sexo; por trás das máscaras respiratórias,
pobres diabos sem rosto, mourejávamos escavando a alva massa glacial, buscando uma saída. Eu operava uma máquina que cortava grandes blocos de gelo das vertentes escavadas no maciço subterrâneo em que se haviam transformado antigos mares e em seguida os içava e depositava em esteiras rolantes que os conduziam às salas de processamento. Lembro-me dos perfis suspensos de flores e peixes pré-históricos, do brilho vermelho dos mostradores digitais refletido nos canos polidos dos tanques de oxigênio, dos painéis com legendas em russo que não conseguia ler. Sentia-me em casa, livre e seguro; á noite, sonhava em tons de branco silente.
Tomávamos uma chuveirada uma vez por semana. Não havia luzes no recinto. Os guardas usavam óculos de visão noturna e portavam aguilhões e cassetetes. Homens e mulheres tomavam banho juntos, amontoando-se em duas longas filas sob as bocas que despejavam água. Placas de acrílico barato apareciam no revestimento texturizado enegrecidas e abauladas, com o aspecto de pústulas numa pele inflamada. Sempre conseguia localizá-la sob a nervosa luz fluorescente das portas de saída, movendo-se na direção oposta, por trás da mulher tatuada e bem à frente do homem baixo e musculoso. À noite, dormíamos em beliches, dispostos em longas filas e separados por cortinados. Andei trocando de cama com outros presidiários tentando descobrir onde ela dormia. Peguei os beliches mais altos, os poleiros 83 mais encardidos e infectos, onde o colchão praticamente havia se desintegrado, antes de conseguir localizá-la. Quando o homem do beliche vizinho recusou-se a trocar de lugar, esmaguei-o com o guindaste no turno de trabalho seguinte. O capataz registrou o caso como acidente de trabalho e requisitou outro operário para substituí-lo.
Até me mudar para a cama próxima a dela, não tinha me ocorrido que a mulher e o homem musculoso eram amantes. Ficava deitado ali á noite, ouvindo-os, a respiração rápida e ofegante, o roçar da pele dela na dele. Apresentei-me e fiquei sabendo seus nomes: Cale e Diega. O sorriso de Diega era só caninos. Era dessas mulheres que podiam extrair seu sangue só de olhar para você. Poderia exauri-lo e sugar até a medula dos seus ossos e ainda assim você agradeceria o tempo todo. Cale estava obcecado por ela, isso era evidente. Mais tarde, quando pensava a respeito percebi que era um candidato perfeito para o Hemofluxo.
Mesmo lá no gelo, os olhos dele tinham uma aparência dura e embaçada, semelhante à de bijuterias baratas fáceis de encontrar num camelô de rua em Hong Kong. Era o animal de estimação de Diega. Sente-se e dê a patinha , querido. O que não significava que não o amasse. Diega gostava de mim também. À noite, quando Cale estava fora se entretendo com os jogos de vídeo, ia para a cama dela. Gostava que a massageasse, começando pelos músculos rijos do peito dos pés e dos tornozelos, progredindo objetivamente para cima, passando pelas pernas e coxas até os cabelos louros do baixo ventre. Ela me afagava a cabeça e dizia o quanto gostava dos meus cabelos. Beijava-lhe as palmas das mãos, lia sua sorte, inventando histórias para ela. Às vezes Cale voltava e ficava observando, enquanto eu a acariciava. Ficava lá sentado no pé da cama, como uma gárgula de olhos negros, com os joelhos dobrados e encostados no peito, enquanto deslizava meus dedos pelas pernas de Diega, ou por suas costas e nádegas. Depois eu voltava para minha cama e Cale assumia. Ao contrário dele, eu não gostava de ficar assistindo.
Uma noite, estava segurando com força um dos tirantes do meu beliche, concentrado nos sons que ela emitia ─ vogais tagálicas labiais arredondadas, estranhamente musicais ─ quando a mão de Diega atravessou a cortina que separava nossos catres e envolveu a minha. Segurou-a firmemente o tempo todo. As veias no seu pulso denunciavam o ritmo do coração animal. Sem querer, tive uma súbita visão de Diega como uma criança, agarrando a mão do papai e da mamãe no Zoológico de Manila. Envolvida pelo cheiro desagradável de chocolate rançoso e suor dos animais, com pavor de ser arrastada e se perder no meio das pernas da multidão de estranhos. Depois, senti uma pressão repentina
enquanto deixou escapar as últimas interjeições entrecortadas
do outro lado da cortina. Fiquei imaginando se estava sendo preparado para ser o novo animal de estimação.
No nosso décimo mês de cativeiro enregelado, os Homens de Terno vieram nos buscar.
Na cidade, era fácil ficar invisível. Dormia durante o dia. À noite, saía para caçar, sempre com o cuidado de voltar para casa ao amanhecer. O apartamento estava equipado com janelas especiais, dotadas de vidraças com duas lâminas de vidro polarizado.
Às vezes, observava os letreiros dos clubes pela manhã, na hora de fechar. Ficava impressionado de ver como eram vazios e inertes, como os olhos de um peixe morto. Mas quando o manto da noite descia sobre os telhados, centenas de olhos voltavam à vida, piscando para mim como as garotas de saltos altos e roupas colantes que ficavam na esquina segredando o preço do amor no ouvido dos turistas. Todas muito pálidas, como estava na moda, as orelhas cintilando com o brilho de extravagantes brincos de cristal colorido. Misturava-me ao grupo e vagava entre elas, deixando os rostos estuantes se sucederem à minha volta, quase me tocando, enquanto permanecia atento às batidas dos corações.
Não é fácil passar despercebido neste maldito jato. Os jovens
executivos de olhos vivos do outro lado do corredor insistem
em lançar olhares de esguelha para meu cantinho escuro na cabina de primeira classe, pensando que sou algum tipo de mafioso de férias. Já matei muitos como eles, esfacelando suas estúpidas caras rosadas com minhas próprias mãos. No momento que possuo suas pulsações, passo a possuí-los. Os Homens de Terno tinham rostos como esses. Rostos padronizados como cartões postais, difíceis de distinguir, impossíveis de gravar na 85memória. Compraram-nos do cartel com dinheiro vivo. Fomos, os treze, selecionados entre centenas, de acordo com um modelo
computadorizado, levando em conta os tipos de personalidade,
nossos crimes e atributos físicos e intelectuais. Fomos com eles porque determinaram que assim o fizéssemos. Não sabíamos
quem eram, e não forneceram nenhuma informação sobre si mesmos. Ainda não sei quem pagou meu aluguel. A CIA? O KGB? A companhia telefônica? Mais de uma vez, no noticiário da Rede Mundial, apareceu o rosto de alguém que eu havia eliminado
por ordem deles. Um bioquímico coreano. Um pintor neo expressionista. Uma atriz pornô de Formosa. Que teriam essas pessoas em comum? Que poderiam ter em comum com você?
Uma coisa sou obrigado a reconhecer: a primeira vez que me senti realmente vivo foi quando me ligaram pela primeira vez. Acordei na mesa de cirurgia, recondicionado, com uma voz na cabeça que falava comigo através da bala em meu cérebro. A voz me mandou caçar e me ensinou como fazê-lo.
Era um prostituto ativo na área do Times Square, com uma tatuagem espalhafatosa que, dependendo do ângulo, parecia
ora um desenho com um motivo Maori, ora uma gueixa, ora um escudo ou logotipo de uma associação qualquer. Encontrei-o em um fim de semana, no meio de uma multidão de centenas. Levei-o a um desses grandes cinemas holográficos. Fitava-me o tempo todo de um modo engraçado, com um brilho de neon no olhar. A princípio, eu estava nervoso, com medo de ter escolhido o homem errado. Entretanto, podia ouvir nitidamente as batidas do seu coração, farejar a medula dos seus ossos. Pensando que eu hesitava por timidez, colocou as mãos nas minhas pernas. Quando me inclinei na direção do seu rosto, fechou os olhos, expondo a garganta. Foi quando o peguei. Naquele momento, inebriado pela explosão de vida, pensei: O mar é salgado, e já minerei os mares. O sangue é salgado. O sangue é mar e está vivo dentro de mim. Suguei até a última gota e senti como uma martelada
bem entre os olhos, que me deixou fora de mim, engolfando-me num fervilhante turbilhão líquido. Nessa hora, a única coisa que meus olhos focalizavam era um cristal barato pendurado na orelha do garoto, que emitia imagens pornográficas, como microondas
refletindo-se em latas de conserva vazias no fundo o mar.
Os Homens de Terno não deixavam nada ao acaso. Quando
precisavam de nós, ligavam as coisas em nossas cabeças e atendíamos o chamado prontamente, ansiosos e elétricos, soltando faíscas. Subíamos até o último andar em elevadores com painéis de madeira, música funcional e corrimãos de metal dourado brilhante, com marcas foscas deixadas no polimento por nossas mãos nervosas.
Eu e Cale éramos os mais requisitados; quanto a mim, tudo bem. Tínhamos um salário, mas os assassinatos eram pagos a parte. Os Homens de Terno eram loucos por informática. Soterravam-nos com disquetes, resmas de bisonhas e intermináveis listagens e fotos digitalizadas de qualquer um cuja pulsação nos tivesse sido destinada. Havia também a ficha médica, extratos bancários, situação de crédito na praça, impressão da voz, impressão genética, registro de fundo do olho, carteira de identidade federal, estadual e de trabalho, lista de clubes freqüentados,
lista de amantes. Os Homens de Terno gostavam tanto desse tipo de informação porque assim podiam dar um cunho de respeitabilidade e cumprimento do dever ao trabalho que executávamos, fazendo de conta que éramos todos policiais perseguindo um ideal elevado e não assassinos profissionais. De volta à casa, costumava me desfazer de todo esse lixo na retalhadora,
conservando no bolso apenas as fotografias.
No retrato que me deram, você está sorridente, usando um saiote de tênis. Ao fundo, aparecem palmeiras, recortadas sobre o límpido céu azul mexicano, mas o reflexo do sol tropical na sua pele e o branco da sua roupa lhe emprestam uma aparência de suave frescor, como se estivesse protegida por um banco de neve impenetrável.
Não me interprete mal ─ o desejo sexual não é importante neste contexto. Um adulto normal tem em média quatro ou cinco litros de sangue no corpo. Você é ótima, mas meu tanque está quase vazio. Percebeu?
Cale estava no Cairo, cuidando de um empresário alemão envolvido em negócios internacionais. Diega e eu estávamos dando uma olhada nas lojas da Aldeia. Um lugar graciosamente87
antiquado, interessantíssimo. Ela comprou um canivete automático
de cabo preto fosco, e divertia-se admirando o próprio reflexo nos vidros das vitrines das lojas, mantendo a lâmina no nível dos olhos, fazendo cara de má como um bandido de cinema,
abrindo-o e fechando-o com um estudado ar e displicência. Compramos cerveja na delicatessen da esquina e Diega me contou
como uma noite havia cortado a garganta da mãe com uma lâmina como aquela.
Disse que tinha nascido em uma das fazendas de bebês de Mindanau, de uma mulher artificialmente inseminada com esperma de origem local. Diega bebê foi destinada ao mercado
americano de famílias pré-fabricadas. Arredondaram-lhe os olhos e suprimiram a melanina com nano processadores injetados
diretamente na placenta. Os pequenos instrumentos moleculares
tinham afetado seus olhos, deixando a pupila esquerda permanentemente dilatada. O pais americanos devolveram-na. A criança não satisfazia as expectativas; poderiam trocá-la por alguma outra coisa?
─ Fui enviada mais três vezes ─ explicou ─ mas as mamães
e papais sempre me mandavam de volta.
Quando já estava mais velha, a fazenda vendeu-a para um clube situado fora da Base Naval Americana, na baía de Subic, onde havia uma porção de papais que a queriam.
─ Aprendi a dançar, a enrolar um baseado e a trabalhá-los vigorosamente com as mãos, para que mais tarde a coisa fosse bem rápida.
Uma noite, estripou um dos fregueses e, usando todo o crédito do seu cartão reservou um vôo para os Estados Unidos. Antes de embarcar, entretanto, deu uma passada pela lebensborn
para abrir uma segunda boca em sua mãe natural. Quando pousou em Honolulu, a polícia estava à sua espera.
─ Era apenas uma criança! ─ afirmou, em tom queixoso.
Não pude percebe claramente se estava sentida por ter matado a mãe ou por ter sido presa por isso.
Comprei-lhe uma soqueira de uma prostituta dominadora da Rua Houston. Era grande demais para sua mão, mas deu um jeito de encaixar três dedos nos buracos certos, deixando o mindinho
solto entre os anéis e o arco apertado contra a palma da mão. Depois, encostou o soco inglês no meu rosto, pressionando o lado do meu queixo.
─ Você realmente matou sua mãe? ─ perguntei.
─ Não, meu pai ─ respondeu, sorrindo ─ Molestou minha irmã e eu, então estourei-o com o rifle de caça.
─ Fale sério!
─ Na verdade, mamãe e papai têm uma barraquinha de tacos em Dallas. Fui presa por vender PCP temperado com arsênico
para o filho de um policial.
Na vitrina de televisões de uma loja, a imagem dela com a soqueira empurrando meu queixo aparecia nas várias telas, de uma dúzia de ângulos diferentes, ligeiramente fora de esquadro. Fiquei imaginando que tipo de história teria inventado para fisgar
Cale.
─ É só comigo ─ perguntei ─ ou você sai por aí gozando a cara de todo mundo?
Diega sorriu e tirou a soqueira. Beijou-me onde antes estivera
pressionando.
─ É só com você, querido ─ retorquiu ─ Se fizesse com todos, não seria tão especial.
Roubou o último cigarro do meu casaco e fumou-o enquanto
caminhávamos de volta para casa.
Pensando agora no assunto, isso se parece com o tipo de brincadeira selvagem e estúpida que às vezes as crianças fazem sem saberem bem por quê. Quando tinha seis anos, morava em Queens. Costumávamos andar de bicicleta durante a noite nos estacionamentos escuros, tentando derrubar uns aos outros, desviando-nos como morcegos fantasmas dos blocos de cimento que demarcavam as vagas. Dizíamos uns para os outros que os estacionamentos eram antigos cemitérios cobertos de asfalto e que a finalidade das linhas amarelas era a de ajudar as pessoas a localizarem os antigos túmulos.
Diega, meu Deus, quero vê-la agora. Quero-a de volta naquele
cenário branco onde a conheci. Quero rachar meu crânio e tudo libertar, deixar fluir toda aquela brancura com a qual costumava sonhar no tempo das minas. Era com Diega que eu sonhava. Não com o branco, propriamente, mas com sua pre89
sença lá, dominando tudo, puxando as cordinhas e fazendo tudo funcionar. Branco dos nós dos meus dedos em todas as vezes que sonhei espancá-la, branco dos peixes fossilizados, branco do gelo, branco psicodélico, o branco dos dentes e das máscaras cirúrgicas, branco de luas novas e fosfenos, branco fluorescente, branco de uma chuva de fagulhas ─ cada minúscula nova mais quente que o inferno mas pequena demais para fazer alguma diferença, branco de pus, branco de larva, o branco da rendição,
o branco do olho aparecendo por entre pálpebras semicerradas
quando ela mordia o lábio inferior, tremia e deixava escapar aquelas vogais percussivas.
Nós três éramos como as crianças nos pátios de estacionamento:
coriscos de aço rasgando a escuridão, num vôo cego, por um terreno acidentado. Diega nos usou, a mim e a Cale, com nosso assentimento. Nós a usávamos, também, formando uma espécie de corrente perfeita. A única coisa perfeita da minha vida. Às vezes me perguntava se os Homens de Terno sabiam de alguma coisa do que se passava entre nós. Pareciam totalmente alheios ao que fazíamos uns com os outros no intervalo entre dois trabalhos, executando aqueles assassinatos rituais dos nossos
desejos. Às vezes, entretanto, suspeitava que essa impressão
era errônea, que os Homens de Terno sabiam exatamente o que estávamos fazendo; que haviam planejado para que tudo ocorresse daquela forma, decompondo o padrão de nosso vício coletivo em uma expressão binária de necessidade absoluta, jogando
todos os dados em um grande computador do governo, observando-nos em funcionamento, monitorando nossas ações, registrando-as sob a forma de diagramas, fluxogramas, uma curva
perfeita de obsessão.
Seria realmente possível que tivesse sido assim? Poderia um modelo computadorizado, responsável por nossa presença naquele tempo e naquele lugar, incorporar algoritmos tão complexos
e sutis que fornecessem um verdadeiro perfil de nossas almas? Suponho que fosse possível, mas com os Homens de Terno
todos mortos, era tarde demais para perguntar o que tinha dado errado.
Estava voltando de Sidney, após um trabalho que me tomara duas semanas. Estava vesgo de cansaço, a cabeça estourando,
literalmente arrasado depois de passar vários fusos horários
viajando naquele brinquedinho birmanês suborbital. Você sabe como é: dez gravidades; nenhum serviço de bordo. Estava
meio sonâmbulo quando cheguei ao aeroporto Kennedy, de modo que levei algum tempo para entender quando os Homens de Terno me disseram que ela se fora. Estávamos no carro da companhia. Fiquei olhando para fora, através dos vidros fumé e girei o seletor de rádio do carro, procurando sintonizar alguma coisa que me agradasse. Acabei me decidindo por um noticiário árabe em uma das estações da Rede Mundial e aumentei o volume
o suficiente para abafar a tagarelice irritante dos Homens. Finalmente calaram a boca e me deixaram no meu apartamento. Entrei, joguei minha mala num canto e fiquei sentado no escuro por um longo tempo, massageando uma dor excruciante na base do crânio. Ao amanhecer, acordei com aranhas passeando na superfície do meu cérebro e uma estranha nova batida animal pulsando no meu coração. Respirei fundo e comecei a chorar porque de repente compreendi o que os Homens de Terno tinham tentado me contar, e exatamente de quem era a nova pulsação que me haviam imposto.
Ultimamente, tenho preferido pensar que Diega vinha tentando
me alertar sobre o papel que, instintivamente adivinhara, me caberia desempenhar no nossa pequena tróica, acionando as rodas em algum canto obscuro do meu subconsciente com aquelas histórias sobre a lebensborn e o marinheiro que estripara.
Talvez, a seu modo, estivesse procurando tornar as coisas mais fáceis para mim, deixando-me saber que não consideraria aquilo como uma coisa pessoal, que compreendia que era assim que tinha que ser. Ela precisava fugir e eu tinha que segui-la. Foi quando me dei conta de que ela havia repetido tudo outra vez. Vivera uma representação do pesadelo naquela noite na cidade de Subic. Deitara com quem lhe havia sido designado, fizera com ele algumas daquelas brincadeiras confusas e sem sentido, para depois abandoná-lo com o pescoço quebrado e sem tostão, em alguma suíte mobiliada de quinhentos dólares por noite.
Diega Braga. A última vez que a vi, estava deitada ao lado do pobre Cale, todo quebrado, com a arma ainda na mão, em
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cima de um monte de lixo, ambos com as marcas de meus dentes.
Os Homens de Terno, que também matei, contaram-me o que sabiam antes de morrer. Diega e Cale nunca tiveram a mínima
chance. O cara que ela apagou era um mensageiro especial
envolvido em negócios com bancos suíços, deslocando importâncias
substanciais para homens que tinham uma relação profunda e espiritual com o dinheiro de outras pessoas. Quando Diega o matou, provocando a paralisação das ondas cerebrais do sujeito, um simples implante no córtex foi automaticamente ativado,
congelando imediatamente todos os seus bens. O cartão de crédito que Diega roubou dele não passava de um pedaço de plástico sem valor. Não poderia engraxar os sapatos com aquilo,
quanto mais comprar uma passagem de avião. Encontrei-os quando saíam de um clube na rua Bleecker onde estavam tentando
vender o cartão de crédito do suíço para alguns receptores locais. Dançamos juntos, então, nós três. No beco, em um tapete de garrafas de vinho quebradas e folhetos esvoaçantes, pintamos a cidade de vermelho.
A três mil metros de altitude e quase do outro lado do mundo, ainda posso sentir o seu calor. A aeromoça distribui travesseiros, serve café e oferece a opção de três estimulantes neurais recreativos. Desceremos na estação de Byrd dentro de uma hora.
“Uma aventura no verdadeiro âmago da terra” ─ era o que dizia o vídeo da agência de turismo ─ “Apreciem paisagens recobertas
de branco mais antigas que o próprio homem!”
Será fácil me livrar destes turistas imbecis depois que aterrissarmos.
Também não vai ser difícil afanar um carro de neve. Ainda me lembro do lugar lá na tundra onde os hidromineiros costumavam estacionar aqueles veículos. Com um deles poderei ir para bem longe nas montanhas, onde jamais me encontrarão e de onde não me sentirei tentado a sair para persegui-la. Esta é a diferença entre Diega e eu. Eu quis fugir. Não sei se a morte era realmente o que ela estava procurando, mas tenho certeza de que, no fim, pouco se importava.
Os Homens de Terno não tinham necessidade de me dar a pulsação dela, mas o fizeram. Diega e Cale não tinham necessidade de permanecer numa cidade que eu conhecia tão bem, mas permaneceram. Era bem típico dela ficar por ali brincando em cima do gelo mais fino que pudesse encontrar. Ou, quem sabe, não desconfiava de coisa alguma. Talvez fosse apenas outra alienada
como eu.
Não acredito quase em mais nada. Só sei dizer que a razão por que estou aqui, a razão por que matei os Homens de Terno não é por terem me acionado para liquidar meus próprios amigos.
Poderia ter poupado Diega e Cale da mesma maneira que vou poupá-la. (Ponha os ombros para trás, endireite o corpo e sorria. Ofereço-lhe sua pulsação de volta. Não a quero mais. Não posso suportar seu peso.) Para ser honesto comigo mesmo, sou forçado a reconhecer que a razão pela qual matei todos eles não foi nem porque Diega escolheu Cale, mas porque não escolheu a mim.Uma diferença sutil, porém importante.
Aqui, entretanto, estou em terreno familiar. Talvez esta confissão seja uma tentativa atabalhoada de tentar desligar estas
merdas de detectores de uma vez para sempre e ao mesmo tempo afugentar definitivamente os fantasmas da culpa. No momento,
vou guardar seus rostos no meu bolso junto com os de todos os outros dos quais me incumbi anteriormente e continuar fugindo. Os Homens de Terno também obedeciam ordens, você sabe; e os patrões não gostaram nada, nem um pouquinho, do que fiz com seus rapazes. Deixei uma verdadeira fortuna daquela água do âmago da Terra transbordando pelas beiradas do terraço,
litros e mais litros. Contemplei-a enquanto se tornava rósea em volta dos corpos, encharcando as camisas sociais bordadas com monogramas, os cabelos que boiavam e as pilhas de listagens
rasgadas. Lavei-me na água de um milhão de dólares e abandonei o silêncio quase religioso daquele açougue, fechando a porta ao sair.
Afundado em couro macio na primeira classe. Alguns assentos
à minha frente, uns bêbados, com pinta de executivos de nível médio, estão tentando passar uma cantada na aeromoça e estou morrendo de vontade de rasgar aquelas gargantas magras
e rosadas. A coisa na minha cabeça está rosnando para mim, avisando-me que estou faminto e de que seria fácil abrir
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você e beber-lhe o conteúdo. Tudo que teria que fazer seria dar meia volta e regressar, o que seria um truque interessante, considerando
que estamos a trinta mil metros de altitude. Quanto mais me afasto de você, mais desesperados os apelos da coisa em minha cabeça, zumbindo como uma vespa presa em uma campânula. Esta luz é um martírio. Minha pele é leite coagulado. Quando levanto minha mão, posso praticamente ver os ossos através dela. Você nunca saberá como está sendo difícil deixá-la. Se não fosse pelas drogas que a aeromoça sorridente me oferece a toda hora, jamais conseguiria.
Os estimulantes recreativos operam no sistema límbico, excitando receptores de glutamatos no hipocampo e na amígdala.
Memórias se apagam, dispersam-se como fumaça. Imagine mudar rapidamente de canal na Rede Mundial, cada imagem se superpondo à anterior. Crianças andando de bicicleta. Peixes fossilizados. Canivetes automáticos reluzentes. Lembro-me de que andei me sentindo mal antes da viagem para Sidney. Cheguei
a pensar que era uma gripe, mas agora percebo que estava sofrendo antecipadamente com a separação. Diega estava cortando
os laços que nos prendiam, deixando-me à deriva. Estava no banheiro lavando o rosto quando ela entrou e trancou a porta. Tocou-me e abriu me zíper perto da pia, envolvendo-me com as pernas. Transamos ali mesmo, no chão. Horas mais tarde, passando
pela alfândega, na Austrália, ainda podia sentir o odor da sua pele em minhas mãos. Atrás da sua cabeça, o branco dos azulejos parecia gelado e brilhante, emoldurando seus cabelos, como as paredes nas minas de gelo anos atrás; e quando pude ver o branco por entre as pálpebras semicerradas, tive a impressão fantástica de que dentro da sua cabeça havia um globo de puro cristal. Ainda sonho com aquela visão, pensando que se tivesse alguma maneira de penetrar no seu crânio, poderia varrer para sempre a motivação que determinou sua fuga, impedindo que ocorresse.
Da janela posso ver os campos gelados do Planalto Gelado Sul. Ainda sinto sua presença no subsolo, mantendo-os unidos sob o gelo, naqueles catres gastos de madeira. Deslizo minhas mãos pelas suas costas, cavando na tempestade de neve e bancos de gelo das suas carnes, abraçando-a naquele momento, escutando seu balbuciar no clímax com um outro homem. Imediatamente
antes de me deixar ela me deita no chão, abre o vestido e desce sobre mim, como a sombra de um corvo, puxando-me para ela. Sinto o frio dos ladrilhos nas minhas costas quando tira minha camisa pela cabeça. Estou bêbado e cego pela neve, captando a imagem do seu rosto em chibatadas coloridas que queimam como o interior do meu crânio. A coisa no meu cérebro está me cozinhando e estou com medo. Quando toco o solo, meus pés abrem buracos no gelo. Vão me seguir e terei que dançar com eles do mesmo modo que dancei com a pobre Diega. Entretanto, antes disso, antes que mergulhemos para sempre, juntos, nessa imensidão branca, direi a eles de uma vez por todas para que compreendam: voltei para casa.

Extraído de Isaak Asimov magazine

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