segunda-feira, 23 de agosto de 2010

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-TERCEIRA PARTE


MILHARES DE BARBEIROS:
É A PRAGA

Aquela madrugada ficou conhecida no Beco do Deus–me–livre como a Noite dos chupanças. Enquanto eu estava preso, sofrendo torturas e todos dormiam, como por encanto, de cada vão de porta, de cada fenda, de cada greta, foram surgindo, primeiro uma, depois outra, depois mais outra pata peluda – o primeiro barbeiro sedento de sangue. Segundo eu soube depois, o primeiro a dar o alarme foi o Finão. Ele estava dormindo, quando sentiu alguma coisa insignificante, vinda do teto, cair sobre ele. Passou a mão no rosto e, de repente, deu um pulo da cama, pois morria de medo de barata. Acendeu a luz, já pronto para pregar o chinelo na danada. Aí viu que não era barata coisíssima nenhuma, mas sim um bitelo de um chupança. Meteu–lhe uma chinelada, no meio das antenas, enquanto chamava pela mulher. Olhando para cima, notou mais dois ou três, cai–não–cai da viga do teto. – Martinha, acorda, diabo! – ele começou a gritar, chacoalhando a companheira. Ao mesmo tempo, os outros moradores também foram dando pela presença dos intrusos, Deca – frentista em um posto de gasolina, vizinho parede e meia de Finão – acordou com o barulho que havia na casa ao lado. – Que barulheira é essa aí, xará? – Chupança, Deca. Um monte deles aqui em casa... Deca também acendeu a luz e ficou horrorizado. – Aqui também, xará! Minha nossa! Na casa de seu Genoca – candidato do Beco a vereador nas últimas eleições que carinhosamente promovemos a senador – a mesma cena. – Jesus amado! Genoca, acorda, homem de Deus! – sua mulher acordou aos gritos. Em minutos, dezenas, centenas de barbeiros começaram a invadir cada fresta, cada fenda, cada vão dos casebres, casas e barracos do Beco, causando pânico e desespero. Na casa de Zê Tem, na de seu Mané e na Travessa Tupi, onde eu moro, a mesma coisa. Na viela Reverendo Laureano, o mesmo drama, No barraco de seu Marquito e no de seu Itamar; enfim o Beco todo se alarmava na madrugada. No corre–corre, no sai–que–eu–prendo–e–arrebento gerado, era um tal de chinelo pra cá, tamanco pra lá e – vapt! – tome seu desgraçado e – vupt! – olha aquele ali, xará, arrebenta com esse fincão aí, senador, olha um chupança se escafedendo por ali, seu Mané, e dá–lhe seu Itamar, isso seu Licurguinho, capricha nessa sanguessuga aí, gente boa, acerta o passo desse bicho–de–parede, Marquito, vamos liquidar com essa bicharada... Zê Tem e o senador se armaram com umas latas de inseticida da vendinha de seu Licurguinho e saíram esborrifando venêno, que nem água benta, pelos barracos. Adiantou pouca coisa. Isso só serviu para deixar os barbeiros mais ouriçados, revoando em cima do povão. – Salvem as crianças! Salvem as crianças! – padre Bernardo ordenava, tentando colocar ordem no desespero. – Desocupem as casas! Saiam dos barracos! Levem as crianças para a frente da igreja! – exclamava senador Genoca, ajudando a coordenar a retirada, juntamente com seu Licurguinho, seu Itamar e Marquito. – Beca, seu Mané, me ajudem aqui... – O que foi, Finão? – Vamos fazer tochas para enfrentar esses chupanças,. Rapidamente, todas as casas, casebres e barracos foram esvaziados. Na frente da igrejinha de padre Bernardo, fizeram um círculo bem largo de fogo, colocando as crianças dentro. Era uma maneira de isolá–las do ataque dos barbeiros. Finão, seu Mané e Beca, munidos de tochas, avançaram casas e barracos adentro, chamuscando portas, janelas, paredes, desalojando centenas de barbeiros escondidos nos vãos e buracos das madeiras. O inevitável, porém, aconteceu: na confusão gerada, na ânsia de acabar com os barbeiros, as tochas, lambendo portas, janelas e paredes, acabaram por dar início a um incêndio incontrolável. As labaredas, em questão de minutos, começaram a lamber os barracos, espalhando o terror e o desespero pelo Beco todo. A desgraça só não foi maior porque os barracos e casas já estavam praticamente vazios. Se os moradores do Beco estivessem dormindo, haveria muitas mortes, porque o fogo se alastrou com muita rapidez, encontrando em sua destruição um material muito propício: a madeira seca dos barracos, Eu – preso no porão de um lugar desconhecido – não podia nem imaginar o que estava acontecendo com minha família, meus manos, com o povo sofrido do Beco.

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