domingo, 22 de agosto de 2010

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-PRIMEIRA PARTE




ALGUÉM TEM UM

APAGADOR DE MEMÓRIAS?


Ser acusado de um crime que não se cometeu é a pior coisa do mundo.
Só quem já passou por esse drama pode compreender o sufoco que é ter de pagar por uma falta não cometida, por um crime não praticado.
Eu digo isso porque já estive nessa situação. Sem querer, entrei na
maior fria da minha vida. E tudo aconteceu quando eu vinha voltando da
escola, tarde da noite, em um dia que eu gostaria de esquecer, de apagar da minha memória, como se apaga um quadro–negro.
Eu curso o primeiro colegial, período noturno, na EEPSG Cônego
Musa Julião Motta de Barros, na cidade de Ribeirânia.
Na noite em que tudo começou, nós tivemos só três aulas: uma de
Português e aula dupla de Matemática, uma prova muito difícil. Na hora do intervalo, fomos dispensados. Em vez de ir direto para casa, ficamos
conversando eu, o Carolli e o Roberto Ruocco, um colega que veio de
Pinhal.
O Carolli, repetente do primeiro colegial e mais velho da turma, tem o
apelido de Véio. Ele não se importa. Creio mesmo que ele gosta de ser
chamado assim. Dá mais moral para ele.
Até aquele dia, eu, o Véio e o Roberto éramos amigos inseparáveis.
Mas a partir daquela noite, com tudo o que aconteceu, nossa amizade ficou muito abalada. Hoje já voltamos às boas, mas foi difícil superar a
desconfiança deles.
Na saída da escola, uma vez que tínhamos bastante tempo, ficamos
conversando na esquina. O Carolli, como era bom de Matemática, ficou
resolvendo os exercícios da prova.
– Pó, Tinho! Mas era uma barbada, mermão! – ele me explicava,
quando eu disse que não conseguira resolver a segunda questão, um
problema envolvendo equação do segundo grau. – Quando você obteve o
número vinte e dois, era só passar o xis para cá e...
Tinho, esse é o meu apelido. Meu nome é Walter. Walter da Silva, mas
todo mundo me conhece mesmo é por Tinho; tanto lá no Musa Motta, como no Beco, onde moro.
– Barbada pra você, que é chegadão nos números – respondi,
justificando–me.
– Pra mim também é fogo. Matemática é muito complicado. Véio, você
bem que podia dar umas aulas particulares pra gente, né? – disse Roberto, o olhar na direção de Carolli.

Nesse momento, o Valdir Domeneghetti vinha se aproximando da
rodinha.
– E aí, pessoal? Vocês também foram dispensados?
Ao me ver, ele perguntou:
– Tinho, você falou com o gerente do seu banco?
Antes que eu respondesse, ele continuou:
– Se eu conseguir ser guardinha lá no Banco do Brasil, eu tô feito..
– Que guardinha, meu! Mais respeito. Eu sou menor estagiário –
respondi, em tom de gozação. Depois, sério: – Deixe comigo, Valdir. Eu tô
batalhando. Falei com o seu Baraldi, o gerente, e ele disse que a escola tem que indicar o seu nome. Aí você faz um teste lá e, se der legal, você vai mesmo ser guardinha do Banco do Brasil – voltei a chateá–lo, reforçando a palavra guardinha.
Na verdade, não era tão fácil assim. A seleção era fogo. Tive muita
sorte conseguindo entrar lá. Portanto, minha vida é assim: estudo à noite e, de dia, sou o lépido, rápido e rasteiro menor estagiário do Banco do Brasil, com as funções de ir e vir do térreo ao décimo andar, levando e trazendo documentos, tirando fotocópias, sempre rapidinho, que eu não dou moleza mesmo. No dia do meu aniversário, até ganhei um troféu, em
reconhecimento à minha esperteza.
Naquela noite ainda falamos de futebol, comentando a fase ruim do
Coríntians, mas elogiando a personalidade amadurecida e o espírito de
equipe do Sócrates. Quando eu falei que o Palmeiras também não andava bom das pernas, o Valdir – que é palmeirense verde – se queimou. Aí o Roberto interferiu:
– Vamos mudar de assunto, senão vocês vão acabar brigando. Vamos
falar de meninas. Vocês viram como a Biasoli está bonitinha?
Pronto. O assunto agora era mulher, e de mulher todo brasileiro
também entende e dá palpite.
– Sou mais a Eloísa Gazini – o Carolli votou.
– Aquela morena, colega da Roberta? – perguntou Valdir.
– Essa mesmo. Ela é um chuchuzinho...
– Eu prefiro a Leonel, Véio – o Valdir escolheu.
– Eu fico com todas – respondi, colocando um ponto final na votação.
Aí o Carolli se lembrou de comentar o caso dos túmulos arrombados.

– É mesmo, vocês ouviram falar? – o Roberto fez cara de quem viu
assombração.
– O Tinho viu os caras, não viu, Tinho? – Valdir apontou em minha
direção.
Eu não queria comentar, mas não tive como sair dessa. Conta pra nós,
Tinho...
– Bom, vocês sabem que o cemitério fica no caminho do colégio pra
casa. Toda noite eu passo por lá. Ontem, eu ia passando rente ao muro e ouvi
vozes...
– Era alma do outro mundo ou assombração, mermão? – o Carolli quis
tirar um sarro.
– Aí, ó! Eu já não estava a fim de contar, que eu sabia que ia ter
gozação...
– Véio, sem essa né, meu! – Valdir bronqueou.
– Eu já estava cabrero – continuei, sob protesto – porque, não faz muito
tempo, eu fui visitar o túmulo do meu pai e lá no cemitério os coveiros
estavam comentando que, naquela madrugada, alguém havia violado dois ou três túmulos. Quando eu ouvi as vozes, lembrei–me da conversa com os coveiros.
– Você não ficou com medo, Tinho? – perguntou Roberto, interessado
na história.
– Medo de quê?
– Sei lá, de alma penada, assombração, mula–sem–cabeça, esses troços,
– Eu tenho medo é dos vivos; dos mortos não... Eu escutei as vozes e
resolvi observar por cima do muro... – continuei a contar. – Não deu outra.
Dois sujeitos estavam escavando um túmulo, não muito longe dali. Como
eles estavam ocupados, nem perceberam que eu os observava. Um deles
falou assim: "Enterraram fundo demais esse defunto, hein, cara!" O outro respondeu: "Isso é nem enterrar, amizade, isso já é plantar o coitado aí dentro". Eu queria dar um susto nos dois, mas fiquei com medo. Pensei em dar um gemido forte, sei lá. Mas e se eles me encarassem, eu estava frito. De repente, lá no fim da rua, apareceu uma rádio–patrulha...
– Aí você avisou os guardas? – Carolli perdera o ar de gozação e
acompanhava a narrativa com interesse,
– Eu pensei em avisar, Véio, mas preferi descer do muro, antes que me
vissem, e seguir o meu caminho. Fiquei com medo que eles me
confundissem com os arrombadores...
De repente, o Carolli me fez uma pergunta que me deixou muito
chateado:

– Tinho, você falou que foi visitar o túmulo do seu pai. E o assassino
dele, a polícia ainda não descobriu quem foi?
Eu não queria comentar nada sobre a morte do meu velho, mas ele
insistiu e o jeito foi encarar,
Não fazia muito tempo, meu pai fora estupidamente assassinado,
Chegaram ao requinte de esquartejar barbaramente o seu corpo.
Foi uma cena horrível, que abalou a todos os moradores do Beco. Eu
não gosto nem de lembrar muito isso. Ver o pai da gente naquele estado é
uma cena que nunca mais sai da cabeça de ninguém.
Não fosse a fibra de dona Jacinta – minha mãe –, eu e os manos até
hoje não saberíamos o que fazer.
Meu pai não teve muita instrução, mas tinha cursado a escola da vida,
essa sim a responsável pela sua formação. E foi nessa escola que ele se
diplomou, ensinando pra gente que o mais fraco precisa falar, botar a boca no mundo, gritando, se for preciso.
Foi essa fibra que fez dele um homem respeitado lá no Beco,
Quando eu ainda era de colo, só pra recordar, os trens da Mogiana
passavam por dentro de Ribeirânia. E passavam pertinho do Beco. Padre
Bernardo, vigário lá do Beco, cansado de pedir ao prefeito para colocarem uma cancela a fim de evitar mais acidentes e mortes, sentou–se na linha do trem, impedindo que as locomotivas continuassem atropelando os moradores.
Meu pai foi o primeiro a seguir o seu gesto, incentivando o resto.
Isso lhe valeu a liderança no Beco. Depois disso, era comum ouvirem
meu pai pra tudo. Qualquer desavença, qualquer bate–boca, lá estava meu velho dando sua opinião, fazendo valer o seu diploma da escola da vida.
Foi ele quem enfrentou o "xerife" Boca Torta, um bandidão que
apavorava a todos lá no Beco. Depois que ele desarmou o bandidão a unha, na base do olhar duro e firme, nunca mais nenhum xerife se atreveu a fincar base no Beco, sem que levasse o troco. Assim foi também com Malufim,Ademarzão e Taturana.
Meu pai sabia, no entanto, que o que vale mesmo é um diploma, um
cartucho como ele dizia.
– Filho, sabedoria ninguém te róba – ele falava quando me via
farreando com a molecada do Beco. – Toma tento que

sem cartucho ocês vão ter que dá murro em ponta de faca, que nem eu,
Realmente, ele não merecia morrer daquele jeito. Ninguém merece.
Além de esquartejá–lo, a malvadeza foi tanta que estancaram o corguinho da Onça, que passa pelo Beco, e o seu corpo ficou boiando sem destino, as águas sangrentas inundando o terreno dos barracos, querendo invadir as casas.
– Não encontraram não, Tinho? – Carolli insistiu.
– Não, Véio... ainda não... – respondi, vagamente.
Vendo que eu me entristecera com a lembrança da morte de meu pai,
cada um resolveu tomar o seu caminho, a conversa morrendo ali.
Despedi–me com um tchau sumido, tomando meu rumo, sem saber que
o pior ainda estava por acontecer.


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