segunda-feira, 23 de agosto de 2010

DEUS ME LIVRE -SÉRIE VAGA-LUME-LUIZ PUNTEL-SEGUNDA PARTE


MALDITA MANIA DE LER
GIBI AMERICANO!

Deixando os colegas, tomei o caminho de casa. Moro no Beco do Deus–me–livre, um terreno muito grande que, por ironia do destino, acabou ficando encravado entre a Vila Carvalho e o Tanquinho – os dois bairros mais chiques de Ribeirânia. Dizem os mais antigos que aquele pedaço de mundo pertenceu a uma fazenda de um homem chamado Artésio, que morreu e não deixou herdeiros, uma história mais ou menos assim. Dizem também que, antigamente, era comum os moradores da cidade exclamarem: – Mas você mora lá nas terras do Artésio? Deus–me–livre! E a expressão pegou pra valer. Com o tempo, a cidade veio montada a galope no progresso e o que era longe ficou perto, o que era distante ficou ali mesmo, encravado no umbigo da cidade grande, atrapalhando. E Deus–me– livre deixou de significar lonjura para se transformar em desprezo, incômodo, em sinônimo de estorvo, aborrecimento. A gente se acostumou a chamá–lo de Beco por falta de outro nome, mas é quase uma favela: velhas casas, humildes, mais para casebres do que residências e muitos barracos amontoados entre vielas, travessas, ruas irregulares e estreitas. Para ali eu me dirigia, quando tudo aconteceu. 12 Devia estar beirando a meia–noite. Eu vinha pensando na morte de meu pai, o velho Afonso, na minha mãe, que não derramou uma lágrima, tal a sua fibra, em tudo o que de ruim havia acontecido. Eu já havia passado pela praça Sete de Setembro, pelo correio, pelo cemitério, subido a Ludovico da Cunha e estava entrando na Monte Alegre. Se eu soubesse o que estava para me acontecer, teria preferido andar vinte quilômetros a entrar naquele quarteirão. Pois foi só dobrar a esquina e deparei com uma coisa estranha: em frente à Faculdade de Medicina, no meio do quarteirão, havia uma Kombi parada no meio–fio, um pouco para a frente, debaixo de uma árvore, onde a luz não iluminava direito. Tudo normal, até aí. Afinal uma perua Kombi parada no meio–fio, mesmo em lugar mais escuro, não tem nada demais, ou tem? O que me chamou a atenção foi que, ao chegar perto do prédio da Faculdade, eu vi um homem em atitude suspeita, andando pelo corredor lateral. Rapidamente, com um pé–de––cabra, ele começou a forçar a janela. Parei atrás de uma árvore, olhando o que ele ia fazer. Assim que conseguiu abrir uma das folhas da janela, tomou impulso e pulou o parapeito. Não havia mais dúvidas: era um ladrão, E ladrão – era dito de boca em boca no Beco – trata–se a pescoção. Não hesitei. Corri, atravessando a rua. Largando os livros da escola no jardim enquanto corria, eu me senti o Super–homem lutando contra os inimigos de Metrópolis. No mesmo pique que eu vinha, tomei impulso e – vumpt! – bati os pés no chão, saltando que nem o meu herói preferido. De um pulo, eu estava no parapeito da janela. Como um gato – vapt! – pulei para dentro do prédio. Só aí é que entendi que de Super–homem eu só tinha dois ou três gibis, todos eles faltando algumas páginas, guardados na gaveta da cômoda lá de casa. Ali estava eu, o Tinho do Beco, subnutrido e raquítico anti–herói, ser nada super–humano, brasileiro sim senhor. Foi só eu botar os pés no chão – plaft! – e levei logo as mãos à cabeça, vendo a burrada que fizera. – Quietinho aí, garotão! Pare onde você está. Não se mexa e nem pense em bancar o engraçadinho... – Pô, meu! Desculpa, tá? Devo ter entrado em janela errada. Eu tava pensando que.,. Não adiantou querer me desculpar. A voz foi autoritária: – Sem pensar, garotão... Já que entrou, agora fica. Sem pensar e sem falar, tá legal? Tava, o que eu podia responder? Minha vontade era fazer tudo ao contrário, como nos filmes do cinema mudo: despular a janela, voltar para trás da árvore, para a rua Ludovico da Cunha, mudar de caminho e tomar rumo ignorado. "Maldita mania de ler gibi americano!" – pensei. – Enquanto eu acendo a lanterna, feche a janela. Mas devagarinho... Quando fechei a janela, ficou tudo escuro. Só conseguia ver o facho da lanterna que o homem portava, à minha direita. – Não se mexa, garotão – disse ele, quando eu tentei me mexer. – Só faça o que eu mandar. Se você já brincou de mocinho, sabe o que é um "berro", não? Eu sabia. Só que o dele não deveria ser de brinquedo, como os do meu tempo de moleque. Agora sim, vá se virando devagar. Assim, como um bom menino... De leve, amizade! Na maciota. Muito de leve, falô?... Tá vendo esse saco aí no chão? – E o facho de luz iluminou perto dos meus pés. Eu estava. – Pega ele... Não, assim não. Eu disse na maciota. Como um bom menino... A gente não tem pressa, certo? Amizade, está vendo esses vidros aí na sua frente, em cima do balcão? Eu não estava. Depois, com o facho da lanterna, eu vi os vidros sobre o balcão, uma infinidade deles. – Com calminha, falô? Com calminha, amizade. Isso, você vai colocando um por um dentro do saco. Ao ver que os vidros estavam cheios, eu não quis obedecer. Parei, horrorizado. Num dique, compreendi onde estava: era a sala da doutora Rosângela Conceição. Ainda na semana passada, eu estivera naquele prédio, naquela mesma sala, entrevistando a doutora para um trabalho de escola. Viemos eu, o Véio, o Roberto, a Cris Biasoli e a Cláudia Leonel – a nossa equipe toda. – Por favor, cuidado com esse balcão – disse–nos a doutora, logo que entramos na sala. – Estes vidros estão cheios de barbeiros infestados. Estes bichinhos – e a doutora pegou um vidro com indiferença, demonstrando intimidades – transmitem uma doença terrível: a doença de Chagas. São meus companheiros de pesquisa. Eu os venho pesquisando há muito tempo... Dentro dos vidros, gordos insetos – centenas deles – projetavam suas patas imundas contra o vidro, querendo subir até a tampa, mas escorregando em cada tentativa. Naquele momento, eu não tinha escolha; sabendo que eu tinha um revólver às minhas costas, o jeito era obedecer. Eram os barbeiros pela frente e o revólver às costas. Hesitei, mas sabia que acabaria obedecendo. – É isso aí, garotão! Vai pegando ou eu meto uma azeitona na sua cabeça. Pra mim tanto faz, amizade! Tive medo, mas não havia escolha: era preciso obedecer mesmo. Com nojo, comecei a pegar os vidros, colocando–os dentro do saco. Com a operação, os insetos ficaram excitados, tentando sair dos vidros, o que aumentou o meu medo e o meu nojo. Quando terminei, o homem ordenou: – Agora nós vamos sair daqui pela porta da frente, numa boa, tá legal? Você vai na frente, carregando o saco nas costas. Eu vou atrás – disse ele, calmamente. – Se cruzarmos com alguém, você não sabe, não viu, não conhece... Deixa que eu dou as explicações. Na rua, não banque o engraçadinho. Tó de olho no saco e em você. Descuidou, dança! Àquela hora, o prédio estava vazio. A rua também estava deserta. Atravessamos o jardim rapidamente. Para minha sorte, já na rua, não longe dali, vinham dois moradores do Beco: o Pedrão, um sujeito patoludo e mal– encarado, um tipo estranho, e seu Odair. Pedrão já ia para o seu ofício de guardador de lugar na fila do INPS. Já seu Odair era guarda–noturno nas vizinhanças. Tentei retardar o passo, fazendo cera, mas o homem me ameaçou, cochichando pressa. Pedrão e seu Odair me reconheceram. Antes de entrar na parte traseira da Kombi, tive a certeza de que eles me reconheceram. O homem trancou–me lá dentro, fechou bem os vidros e, logo depois, o furgão saía cantando os pneus. "Ainda bem que eles me viram", pensei. No dia seguinte, poderiam testemunhar a meu favor, contando que eu não tinha nada com o roubo dos barbeiros, provando que eu estava sendo forçado. Logo que a Kombi começou a andar tentei me safar, mas vi que era besteira: a porta só abria por fora. Acostumando–me com o escuro, percebi que havia um respiradouro que dava para a cabina e, encostando o ouvido no buraquinho, dava para escutar mais ou menos o que os dois homens falavam. – O que saiu errado? – perguntou o motorista, em tom de censura. – Você não viu um garotão pular a janela, logo depois que eu entrei no prédio, amizade? O jeito foi trazer ele junto... – Você está maluco, cara? – Você acha que eu podia deixar o garotão soltinho da silva para fazer o meu retrato falado pros tiras? – Eu não queria entrar nessa, cara! Eu avisei pra você que o nosso negócio é arrombar túmulos, não é mudar de ramo... – Qualé, amizade! O tempo das bocas–ricas já passou. É bom ir pensando em deixar essa vida de tatu. Daqui pra frente, é preciso mudar sim. Então era isso. Bem que eu estava desconfiado que aquelas vozes eram familiares. Os dois eram os mesmos que andavam arrombando os túmulos. – E o que a gente vai fazer com ele, cara? – Isso é o chefão quem vai resolver. Mas eu não podia deixar ele ficar lá, né, amizade? O motorista parecia ter entendido, porque não insistiu mais. Houve, então, um longo silêncio entre os dois. Depois de um bom tempo, eles retomaram a conversa, o amizade tentando convencer o motorista. – Era a melhor hora pra se entrar no prédio. A gente não contava era com o aparecimento desse palhaço... – Sei não, cara. O chefão não vai gostar nada disso. Não estava nos planos, entende? O negócio era pegar os barbeiros, sem deixar pistas. Aí a gente começava a praga e tudo bem. Agora, temos que voltar à garagem, falar com o chefão, levar bronca. – Nisso eu fui esperto, amizade! – e ele deu uma risada irônica. – Se alguém vai se ferrar, vai ser o garotão aí atrás. Quando ele apareceu, eu mandei ele encher o saco de barbeiros. Tem impressão dele por todos os lados. Se alguém vai se ferrar, esse alguém vai ser ele. "Droga de vida! Mais essa, então?" – pensei, fulo da vida, sem nada poder fazer. A Kombi, para me confundir, começou a andar em círculos. Na certa, os homens não sabiam o que fazer comigo, apesar de terem dito que iriam voltar à garagem. O fato de ficarem andando me deu uma relativa calma. Não iam me matar imediatamente. Pretendiam mesmo me levar até o tal chefão. Caso contrário, não se preocupariam em dar voltas e voltas. Bastaria ir direto para o mato, abrir a porta traseira do furgão, mandar que eu descesse, para me fuzilar com um balaço na testa, como fazia o Esquadrão da Morte. Uma coisa que me intrigava era o destino dos barbeiros. O que fariam com eles? Que praga seria essa? Por que estavam roubando mais de mil barbeiros? O que fariam com eles, meu Deus? – O que a gente vai falar pro chefão, cara? – o motorista retomou a conversa. – Sei não, amizade! Mas, de qualquer jeito, os barbeiros estão aí. Vamos direto pra garagem agora. O chefão deve estar lá. Depois de rodarmos um tempo que não sei se foi de quinze minutos ou meia hora, mas que tinha a sensação da eternidade, a Kombi foi diminuindo a velocidade, até parar. Pelo sacolejar, devia ter deixado o asfalto e entrado em uma estrada ou rua de terra. Logo depois, notei que alguém desceu da Kombi para abrir algo como um portão. O furgão rodou por um terreno cheio de pedregulhos e tive a certeza de que chegávamos a um pátio de manobras, – Lá está o chefão, cara! – escutei o motorista afirmar. – Vai dar o maior bode quando ele souber do seu garotão aí atrás. – Fica frio, amizade! Você está parecendo maria–mijona... Desceram. Os passos sobre os pedregulhos se distanciaram. Não demorou muito, retornaram apressados, com mais alguém. – Mas como imprevisto, seus palermas?! Vocês já deviam estar executando o Projeto Pirâmides... – uma voz rouca e nervosa ordenava, impaciente. – É isso aí, chefão... – Isso aí, o quê? – Imprevisto, né! O que se pode fazer... – Mas que imprevisto, seu lesma?! – Tá aí dentro do furgão... – Então abre isso logo, seu palerma! O amizade tremia todo. Pela sua voz, dava para perceber que ele esperava o pior. A porta do furgão foi aberta, e a luz da lanterna feriu meus olhos. – Mas o que é isso, seus palermas! Por acaso vocês são da Assistência Social, para ficar recolhendo os menores carentes, hein? – e o chefão de voz rouca e nervosa dava cascudos no amizade e no motorista. – É isso aí, chefão! A gente pensou em dar um fim nele, mas não quisemos tomar nenhuma decisão sem consultar o senhor – o amizade se desculpava. – Ele se meteu a abelhudo, pegando a gente com a colher no mel... – Fizeram bem, seus palermas – adquirindo o sangue–frio, a calma, o chefão sorriu, irônico –, fizeram muito bem. Nem eu e nem o doutor gostamos de tirar uma gota de sangue de ninguém. Que os barbeiros façam isso, tudo bem, mas eu não tenho coragem disso... Pra fora, seu fedelho! – ele me ordenou. Virando–se para os dois homens, ele decidiu: – Levem–no para baixo. Que curta umas férias prolongadas até o doutor decidir o que fazer com ele. Quando desci da Kombi, o amizade ordenou que eu abaixasse a cabeça, não olhando para ninguém. Estava escuro, mas eles não queriam se arriscar. – Não é preciso – sentenciou o chefão, – Escute aqui, seu fedelho, se abrir o bico, morre antes que os outros. Você já vai levar o seu por se meter onde não é chamado – e dirigindo–se aos dois, ele falou: – Não batam muito, só o suficiente para mostrar do que vocês são capazes se ele destramelar a língua. E quando terminarem, podem começar a praga, dando continuidade ao Projeto Pirâmides... Ao se afastar, enquanto eu era levado para dentro da garagem, ele dizia mais para si: – Finalmente chegou a vez daqueles palermas do Favelão. Eles vão ver com quem estão lidando... Enquanto uma porta era aberta à minha frente, fiquei tentando ligar o roubo dos barbeiros à frase proferida no escuro da noite. Favelão era como o povo de Ribeirânia se referia ao Beco do Deus–me–livre. De repente, tudo ficou muito claro para mim. Mas eu não queria acreditar que seriam capazes de uma maldade daquelas. Por quê, meu Deus? Era certo que o Beco era odiado pela sua intromissão geográfica. Pobres, favelas, becos, corti19 ços, cohabs sempre foram relegados aos arredores das cidades, à periferia. Mas daí a... Não. Eu não queria acreditar Eu devia estar sonhando. Um empurrão, porém, veio me trazer à realidade. O chão, então, desapareceu a meus pés. Projetado no vazio, desci uma escada da pior forma, aos trancos e pescoções. Estavam me jogando dentro de um porão horrível, sem luz, sem ventilação e cheio de baratas.

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