domingo, 20 de dezembro de 2009

PANTALEÃO E O GUARÁ PRETO E O GUARÁ BRANCO-ESTÓRIA DE CHICO ANISIO

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Os DADOS DERAM DOIS PARES DE SEIS, e Pantaleão fez o lance decisivo. Nunca tinha
perdido no gamão, por que que iria perder hoje? Ainda mais quando seu adversário era um incompetente, porque era contra Pedro Bó que Pantaleão jogava, com o tabuleiro escorado nos dois pares de joelhos, aproveitando a brisa que parecia nascer do riacho e
lavava o alpendre de um frescor maravilha.
Dona Terta, na cozinha, temperava o feijão-de-corda cujo cheiro tomava conta de tudo.
— Avia com esse feijão, Terta, que eu tou com a fome de cinco guarás.
Pedro Bó cresceu os olhos. Abriu os lábios num sorriso grande e feliz. Parecia menino que vai receber presente, quando fez o pedido.
— Seu Pantaleão, conte a estória do guará.
Pantaleão irritou-se. Quase tomou por deboche o pedido que o afilhado lhe fazia.
— Mas é cada uma! E onde já se viu, Pedro Bó, eu perder meu tempo contando estória pra ti?
— Mas a estória é tão mimosa. É uma lindeza, a estória do guará.
— Que é linda eu sei, mas quantas vezes tu já me viu contar essa estória?
— Só umas trinta — confessou Pedro Bó.
— E ainda quer ouvir de novo. Oh, Pedro Bó que eu não conheço nada que pareça com gente mais do que tu. Vai te assear que o jantar vai já pra mesa.
Pedro Bó ia obedecer, quando a voz da professora chegou ao alpendre.
— Pode-se entrar?
Foi Pedro Bó quem correu a recebê-la, numa efusão de causar estranheza. Nunca partira dele tamanha gentileza. Mas o motivo não era exatamente a presença de Dona Julinha, era a chegada de uma visita. Com visita presente, Seu Pantaleão não poderia fugir ao pedido do afilhado.
— Conte pra Dona Julinha, Seu Pantaleão, a estória do guará.
A professora estranhou. Ela nem sabia o que era guará.
— Guará — Pantaleão explicava — é um bicho maior do que um cachorro, mas porém mais pequeno do que um urso. Mas é mais feroz do que os dois juntos. Dona Julinha, um guará preto enfrenta cinco homem e nem é com ele. Tem o guará preto, como eu já disse, e tem o guará branco. Esse, então, é pior do que leão. É disso que Pedro Bó tá falando.
A professora já recebia a canjica que Dona Terta trazia, ainda quente. Interessante, a estória deveria ser. E o mistério dos guarás preto e branco fazia crescer a sua curiosidade.
— Conte, Seu Pantaleão. Eu quero ouvir essa estória do guará preto e do guará branco.
Ela pediu de um jeito tão manso, com uma voz tão morna, com um olhar tão dengoso, que Pantaleão não teve jeito de não contar.
— Pois bom!
Era um domingo de manhã. O sol se espichava todo o sertão, esquentando as gentes e os bichos. Era um sol antigo, que há muitos meses aparecia sem faltar um dia sequer. Mas aos domingos era bem recebido.
Pantaleão acordou de bom humor. Abriu a janela que dava para o nascente, respirou fundo, deu comida ao sabiá, limpou o chiqueiro, varreu o quintal. Apesar de farto, o sol não estava tão quente como sempre. Talvez porque fosse domingo. Isso tudo serviu para que Pantaleão tivesse a idéia:
— Vou caçar!
Dona Terta cuidou de botar no matulão duas rapaduras, meio quilo de farinha, um pedaço vistoso de carne-de-sol, o pão que sobrara do café da manhã. Dona Terta sabia que, quando Pantaleão Pereira Peixoto saía pra caçar, não tinha hora pra voltar. Mas de mãos abanando é que não chegava. Ela trouxe tudo, inclusive a espingarda.
— Essa, não, Terta. Quero a espingarda de dois canos, porque vou caçar guará.
Terta sabia da casa, da comida, do serzir de roupas. Terta conhece as manhas da Singer e do fogão. Mas de caçada quem sabe é o marido, que, inclusive, teve que explicar:
— Tem que ser espingarda de dois canos, minha velha, porque o guará preto só morre com dois tiros, guará branco morre com um tiro só, mas vamos que eu ache no caminho um guará preto, que só morre com dois tiros? Tenho de dar um tiro, pei! e, antes que ele escape, dar o outro, pei. Não dá tempo de carregar a espingarda.
Pantaleão foi no pasto, pegou o alazão, selou, despediu-se da mulher com um beijo de longe e ganhou o mato.
Passa hora que passa hora e nada de aparecer um guará para satisfazer o desejo do homem. Veados e pacas, coelhos e tatus cansaram de atravessar seu caminho, mas Pantaleão não saíra de casa pra fazer caçada besta. Ele queria um guará.
O sol começava a desaparecer. O escuro já se insinuava. E mais escuro ficava porque havia nuvens de chuva tomando conta do céu. Um raio cortou o espaço, anunciando o trovão que não se fez esperar. Pantaleão abrigou-se debaixo de um pé dejuazeiro.
— Aí, moça, começou. Era cada pingo que era isso.
— Pingo de chuva?
— Não, Pedro Bó. Era tua mãe que tava num galho do juazeiro. . . e. . . Terta!
Traga a palmatória que eu vou dar vinte bolos em Pedro Bó.
— Não me açoite, não, Seu Pantaleão — pediu Pedro Bó, com os olhos cheios de lágrimas e com as mãos já estendidas para o castigo prometido.
— Não lhe açoito por deferença à Dona Julinha. Mas de amanhã em diante vai ficar todo dia uma hora de cara para a parede, durante uma semana.
Dona Julinha esperava a hora do guará aparecer na estória. Afinal, não lhe havia sido prometido nada diferente. Da chuva ela já sabia, mas. . . e o guará?
— Eu chego lá.
O céu fazia chover naquela tarde o que devia há muitos meses. A água descia encachoeirada pela encosta do morro, as poças cresciam pelo caminho. E já era noite.
— Diabo! Saí pra caçar um guará e vou voltar seco. Será possível?
Pantaleão estava irritado pela derrota. Não era comum isso acontecer nas suas saídas para a caça. Não era dos caçadores que voltam sem coisa boa para a panela. Masdesta vez tudo indicava que. . .
— Espera!
Ele afiou o olhar, tentando afastar os pingos da chuva que formavam uma cortina à sua frente. Estava escuro, mas deu pra ver aquele bicho preto, correndo.
— Um guará preto. Deus me ajudou. Esse não me escapa. Cuidado, Pantaleão — disse para si — que o guará é preto, e guará preto só morre com dois tiros.
E não podia errar. Falhar significava a morte, porque o bicho atacaria.
Ele chegou a admitir que seria melhor que o guará fosse branco. Se o primeiro tiro falhasse, restaria o segundo, definitivo. A chuva caía pelos olhos, prejudicando a pontaria.
O guará o viu no momento em que ele dormia na pontaria.
— Pam!
O tiro perdeu-se na distância.
— Errei! Tô lascado.
Só restava um tiro, e o guará partia na sua direção, ameaçador, mortífero.
Pantaleão escondeu-se atrás do tronco de Juazeiro. A chuva era violenta. O guará, na corrida em que vinha, passou por ele. No momento em que o bicho passou, Pantaleão deu um pulo e gritou; "— Uhhh!
— Pra que esse grito, Seu Pantaleão? — perguntou a professora.
— Pra assustar o danado. O susto que ele tomou foi tão grande que ele ficou branquinho, Dona Julinha. Aí, quando ele ficou branco, eu pensei: "guará branco morre com um tiro só". Aí. . . pei. Bem na testa.

EXTRAÍDO DO LIVRO `É MENTIRA TERTA ` DE CHICO ANISIO

2 comentários:

  1. Muito bom, muito bom mesmo esse conto,gostei.

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  2. ja li esse livro varias vezes e não me canso de ler as estorias de pantaleão...


    kleber de jucuruçu

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