O NORDESTE É TERRA DE MUITOS VAQUEIROS, mas nenhum deles com a competência e o
talento de Pantaleão Pereira Peixoto, montador escolado, cabra que conhece as manhas
e os segredos de qualquer montaria. Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei na rédea,
um deus na sela, fazendo o cavalo trotar ou galopar pelo lugar que deseje.
Por saber dessas virtudes foi a ele que João Inácio recorreu no dia em que seu
touro melhor perdeu-se na caatinga. Quem, por aquelas bandas, seria capaz de achar o
animal?
— Não posso, não, seu João Inácio — desculpou-se Pantaleão, mordiscando o
pé-de-moleque que Terta fizera para a merenda.
— Mas, Seu Pantaleão, se o senhor não for, quem é que pode me ajudar?
João Inácio lamentava a negativa de Pantaleão. Dependia exclusivamente dele
para ter de volta seu touro preferido, que cobria as vacas de modo perfeito, garantindo
uma melhoria de raça que já lhe valera alguns prêmios na capital.
— Se não fosse esse reumatismo nas costas, eu pegava essa empreitada, mas do
jeito que eu estou, até a cama incomoda.
João Inácio sabia que nessas horas era inútil insistir. Teria que dar o touro por
perdido ou esperar o milagre dele voltar sozinho.
Foi o que se deu. Um menino gritava, do alto da mula, lá na porteira.
— O touro voltou, Seu João Inácio, o touro voltou!
Voltou o sorriso à cara do dono do bicho. Voltou a tranqüilidade ao alpendre de
Pantaleão. Seu João Inácio até aceitou o bolo de milho que Dona Terta lhe estendia no
prato pequeno de beirada quebrada.
— Esse touro ia-me fazer muita falta.
— Pra mim ele voltou só porque sentiu que o senhor vinha aqui — disse Dona
Terta, pegando o bastidor e tomando seu lugar na cadeira de sempre. — O touro não
sabia que Pantaleão não ia e, com medo, resolveu se entregar, pensando que ele fosse.
— O touro voltou, né?
— Voltou não, Pedro Bó. Ele veio só dar um recado, mas já vai pra caatinga de
novo. Pedro Bó, se eu te batizar, eu quero ter o rabo do cão nascendo em mim. Tu vai
morrer pagão!
A volta do touro era motivo para comemoração. E era ainda mais. Era tema para
uma estória das mais incríveis. Foi Dona Terta quem lembrou, porque Pantaleão não é
homem de dar importância às coisas que lhe sucedem.
— O derradeiro boi que Pantaleão pegou foi o boi Bozó. Foi o que deu mais
trabalho. Conte o causo pra Seu João Inácio.
— O homem lá quer saber disso? Ele quer é ir ver o boi dele, saber se chegou
bem, se tudo tá em ordem, não é, não, Seu João Inácio?
Podia ser, seria lógico que fosse, mas quem pode resistir à tentação de escutar
uma estória importante como a do boi Bozó? E era estória verdadeira, contada por quem
a viveu: Pantaleão Pereira Peixoto.
— Pois bom...
No sertão não havia quem já não tivesse escutado nesse boi Bozó. O bicho tinha
parte com o cão, havia quem afirmasse. Nenhum vaqueiro, nem mesmo os campeões
nas vaquejadas de Salgueiro, tinha conseguido arrancar do mato o boi valente, tinhoso
como o capeta, sabido como fiscal. Era um boi que pertencia a um coronelão cearense e,
além do medo do boi, havia o respeito ao animal que fazia parte da estima maior do
coronel.
— Meu boi Bozó é meu tesouro — o coronel sempre dizia.
O diabo é que vez por outra o boi se soltava e tomava o mato. Era o caos. Quem
tinha coragem e tutano de o trazer de volta? Fugindo dos cercos, cortando com os
dentes a corda do laço, derrubando vaqueiros e escoiceando os atrevidos que dele se
aproximavam, o boi Bozó só saía do mato quando bem lhe apetecia, como a dizer "saio
porque quero, não tou saindo a mando de safado nenhum".
Mas naquele dia havia um homem da cidade que tinha ido ao sertão especialmente
para conhecer o boi Bozó, tão comentado, tão famoso, o boi preferido do coronel seu
amigo.
— Dr. Faustino está aí, e eu quero o boi Bozó no curral, custe o que custar.
Durante oito horas os homens da fazenda cercaram o boi, prepararam-lhe
armadilhas, tentaram laçá-lo, encaminhá-lo para a fazenda, mas tudo restou inútil. Um
deles, então, lembrou de Pantaleão.
— Só ele pega esse boi.
— E vieram me buscar, Seu João.
— Pra pegar o boi?
— Não, Pedro Bó. Pra pegar um vapor e ir pra Alemanha. Mas será o tinhoso?
Faz meia hora que só se fala no boi e tu vem me perguntar uma pergunta besta dessas?
Hoje você dorme sem cear, pra aprender a não perguntar leseira.
— Conte, meu velho. Vieram lhe buscar pra pegar o boi Bozó.
— Pois bom.
Pantaleão montou no alazão de patas brancas e pescoço empinado, alazão arisco,
que sabia de cor os caminhos do mato. Ganhou o mundo. Andou um dia e uma noite.
Na manhã do outro dia, atrás de uma jurema, estava o bicho. Malhado de branco, baba
no canto da boca, olhar acendido pelo ódio que lhe dava a busca que sofria. Os olhares
se encontraram. Pantaleão sabia que o boi Bozó não era igual aos bois idiotas que se
deixavam pegar com facilidade. Sabia das suas manhas, da sua violência e,
principalmente, não desconhecia o ódio que dava no bicho essa conversa de o cercarem.
O alazão mal respirava, para não chamar a atenção. Pantaleão fez o cavalo
circundar a jurema, querendo pegar o boi pelas costas. Inútil. Como um saci, com a
leveza de um coelho, o boi Bozó deu um pinote e sumiu de vista. Galopava como um
potro.
Depois de o encontrar não seria Pantaleão o homem que o perderia. Na poeira do
boi o alazão galopou. A distância não se encurtava, mas também não crescia. E
Pantaleão não perdia de vista o boi Bozó, pernas enlaçadas em Brioso, seu alazão de
confiança.
O boi subiu o Morro da Estrela com o alazão Brioso em galope farto atrás dele. E
corta campina, corta catinga, dobra desvio, pega caminho, atravessa rio, pula cerca,
passa ponte, passa estrada. O boi Bozó não parava, mas a distância que o separava do
alazão Brioso já era a metade. Ninguém jamais poderá calcular a velocidade em que
iam. O boi Bozó na frente. . .
__ . . .e eu atrás, Seu João Inácio.
— A cavalo?
— Não, Pedro Bó. A cavalo, não. Eu ia montado em teu pai, que, pra mim, não
tem montaria melhor do que teu pai. Terta, arme minha rede que eu vou me deitar. Não
conto mais nada.
Ameaçou levantar-se, a mulher o conteve.
— Conte, meu velho. Pedro Bó perguntou sem querer.
— Conte — pediu João Inácio, muito interessado.
— Pois bom!
A distância entre o boi Bozó e o alazão Brioso já não chegava a vinte metros. Foi
quando Pantaleão deu fé que estavam na cidade do Rio de Janeiro. O povo corria para
as casas e se escondia nas esquinas. Ninguém entendia aquela coisa inacreditável: um
boi malhado voando pelas ruas, seguido por um alazão com um cavaleiro em cima, em
velocidade ainda maior.
— De mim você não escapa, seu boi cachorro!
Pantaleão tinha a honra posta em jogo. Os vaqueiros, no sertão, certamente
estariam apostando se ele traria ou não o boi Bozó, arreliado, bicho mateiro.
Numa esquina o sinal fechou. Boi Bozó era danado, mas era obediente —
palavras de Pantaleão. Parou no sinal e, cansado como estava, deixou que corda lhe
fosse passada pelo pescoço.
— Pronto. Embarque no Lóide — orientou Pantaleão a um cidadão que se
prontificara a ajudá-lo. — Vai voltar de navio, que de pés ele não agüenta a viagem de
volta.
O boi Bozó foi levado para ser devolvido ao dono. Pantaleão abraçou-se ao
cavalo. O alazão Brioso, mais brioso do que o nome, estava frio. Esquisitamente frio.
— Morreu naquela hora, Seu Pantaleão? — perguntou Seu João Inácio, já se
preparando para ir embora.
— Nada. Tinha morrido há mais de cinqüenta quilômetros. O resto ele veio no
embalo. Ah, Brioso, Brioso, que saudade eu tenho do meu cavalinho.
— Esse cavalo, Seu Pantaleão. . .
— Não conhece ele não? Já viu, na frente do Jóquei Clube lá no Rio? Não tem
um cavalo lá, em pé, todo ajeitado?
— Tem. . . tem — confirmou João Inácio, titubeando.
— Diga pra ele, Terta, que cavalo é aquele.
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